O projeto da Conferência de Aparecida é ambicioso. Trata-se de nada menos do que uma inversão radical do sistema eclesiástico. Há séculos a pastoral da Igreja está concentrada na conservação da herança do passado. Todas as instituições foram adaptadas a essa finalidade. Tal sistema foi instalado no século XII e desde então não mudou sensivelmente. De acordo com o projeto de Aparecida, tudo vai ser orientado para a missão. A realização prática desse projeto vai exigir o século XXI inteiro. Com efeito, os bispos lançaram esse projeto, mas agora o primeiro problema consiste em convencer o clero. A presente geração não está preparada para essa inversão das suas tarefas. Vai ser necessário mudar radicalmente a formação e preparar novas gerações sacerdotais bem diferentes da atual.
Fazer toda a Igreja ser missionária é uma tarefa gigantesca. Durante o primeiro milênio, a missão foi assumida pelos monges. Muitos tornaram-se bispos e deixaram a fama de fundadores de Igrejas. A Igreja era predominantemente rural. Nos séculos XI e XII, criou-se o sistema das paróquias. Mas o clero paroquial era ignorante, pois não havia recebido nenhuma formação.
Já no século XIII, Tomás de Aquino se queixava de que o clero não evangelizava, não era missionário. Em compensação, mostrava que os mendicantes é que evangelizavam.
A mesma queixa foi repetida durante todos os séculos até hoje. A missão foi assumida pelos mendicantes a partir do século XIII e, depois, pelas sociedades de sacerdotes missionários tais como a Congregação dos Padres da Missão, de São Vicente de Paulo, a Congregação do Santíssimo Redentor, de Santo Afonso de Ligório, e outras.
Na América Latina, a missão foi assumida em primeiro lugar pelos Franciscanos, que forneceram mais da metade dos missionários. Os Dominicanos tiveram a sua atuação mais forte no século XVI. Os Carmelitas e os Agostinianos chegaram com menos missionários, assim como os Beneditinos. Depois vieram várias congregações.
No século XX, essas ordens e congregações assumiram paróquias e, portanto, somente uma pequena minoria se dedicou à missão, assim mesmo, usando métodos adaptados ao século XVII ou XVIII, mas totalmente inadequados no século XX. Dedicaram-se ao mundo rural no momento em que 80% da população latino-americana migrava para as cidades.
Agora vem o projeto episcopal, que vai exigir uma mudança de mentalidade e de comportamento. A missão será a prioridade e deixará em segundo plano a administração da pequena minoria que frequenta as paróquias. Será necessário mudar a formação sacerdotal de modo radical. Os religiosos vão ter de voltar à sua vocação original e deixar de ser administradores de paróquias ou de obras.
Alguns anos atrás escrevi que dom Hélder era o modelo de bispo do século XXI. Ele foi missionário e tinha um excelente colaborador para todas as tarefas de administração. Sobretudo depois da sua conversão em 1955 e da nova conversão com a chegada no Recife, dom Hélder foi o homem do contato pessoal. Era capaz de atrair, de transformar as pessoas com as quais entrava em comunicação, de modo que elas sentiam a necessidade de mudar de vida. Ele tinha o dom de despertar vocações de cristãos missionários.
1. Os temas mais significativos do documento conclusivo
Em primeiro lugar, é preciso destacar a escolha do tema geral de toda a conferência. Há uns 30 anos, na América Latina, não se falava em missão. Na mentalidade popular, os missionários eram os padres, os religiosos e as religiosas que vinham da Europa e da América do Norte para reforçar os quadros das Igrejas locais. Ou eram os pregadores das “santas missões”.
Tratava-se de uma herança colonial. A missiologia nem sequer constava nos programas de formação sacerdotal. Subsistia como a especialidade de alguns que iam dedicar-se a regiões mais despovoadas ou retiradas como a Amazônia. Missionários eram os evangelizadores dos índios e a maioria deles provinha do estrangeiro.
Isso não quer dizer que não havia católicos, sacerdotes, religiosos, religiosas e, sobretudo, leigos missionários. Sucedia não saberem que eram missionários porque estes não tinham visibilidade nem status definido, mas se caracterizavam pelo anonimato.
Desde então apareceram muitas experiências apresentadas como missionárias. A própria palavra “missionário” entrou no uso comum do povo, identificando certas pessoas como missionários e missionárias. Muitos grupos adotaram o nome de missionários. Hoje em dia, a consciência da necessidade das missões no meio de uma sociedade cada vez mais secularizada cresceu muito. A 5ª Conferência do Celam recolheu o que se preparou durante 30 anos. Dentre as novas experiências missionárias que criaram nova metodologia de missões, pode-se destacar, no Brasil, o movimento animado pela Associação dos Missionários do Nordeste (Amine), posteriormente sistematizado, ampliado e estendido a todo o território nacional pelo padre Luis Mosconi. Também os Redentoristas reassumiram as santas missões. Atualmente outros grupos surgem em diversas partes do País, buscando atualizar a experiência das santas missões populares.
Em segundo lugar, cabe ressaltar que a conferência decidiu voltar ao método de Medellín e Puebla, ou seja, ao esquema ver-julgar-agir da Ação Católica (n. 19). Há insistência muito forte nessa continuidade (n. 391-398). É difícil resistir a ver em tal insistência discreta expressão de arrependimento e confissão. Fato inegável é que a influência de Medellín e de Puebla havia diminuído nos últimos anos. Não faltavam sacerdotes que simplesmente diziam que o documento de Medellín estava superado e já não servia para a Igreja atual. Por isso, convém destacar a forte insistência da Conferência de Aparecida.
Essa continuidade com Medellín e Puebla manifesta-se, sobretudo, em dois temas fundamentais: a opção pelos pobres e as comunidades eclesiais de base. São justamente dois temas que, em outros tempos, foram muito atacados ou tratados com indiferença, como coisas do passado. Tinham desaparecido na Exortação Apostólica Ecclesia in América, decorrente do Sínodo romano de 1997. Se bem que, nos textos oficiais, ainda se mencionassem em certos países (sobretudo no Brasil) a opção pelos pobres e as comunidades de base, a situação geral era bem diferente. Basta lembrar o documento triste e amargurado que um dia publicou o padre José Marins, apóstolo incansável das CEBs em toda a América Latina. No Brasil, é difícil imaginar até que ponto desapareceu a opção pelos pobres e pelas comunidades de base em vários (muitos!) países da América latina.
A Conferência de Aparecida renova a opção pelos pobres (nn. 397, 398, 399). Não se trata de fórmula convencional. O texto é insistente: “Assumindo com nova força esta opção pelos pobres” (n. 399). Aqui também há certo acento de arrependimento e como que uma consciência de que essa opção tinha perdido a sua urgência na pastoral da Igreja: já não era vivida como prioridade. Além disso, o texto reconhece que os pobres são sujeitos da evangelização e da promoção humana (n. 398). Vale a pena ver todo o parágrafo (391-398).
O texto chega até a ponto de usar duas vezes a palavra “libertação” antes proibida. É verdade que ela está matizada pelo adjetivo “autêntica”, (n. 399) ou “integral”. Mas está aí, o que significa que doravante se pode usá-la de novo (n. 385).
O documento conclusivo fala explicitamente das comunidades eclesiais de base (nn. 1.768-1.179). Essa é a parte do documento que sofreu mais correções em Roma, pois o texto dos bispos era muito mais incisivo. Assim mesmo, o texto final enuncia todos os frutos positivos das comunidades de base, reconhecendo que elas foram o sinal da opção pelos pobres.
Os bispos tinham escrito: “Queremos decididamente reafirmar e dar novo impulso à vida e à missão profética e santificadora das CEBs no seguimento missionário de Jesus. Elas foram uma das grandes manifestações do Espírito na Igreja da América Latina e do Caribe depois de Vaticano II” (n. 194). Essas frases foram censuradas e o texto ficou mais fraco. As outras correções vão no mesmo sentido. Mas o texto dos bispos existe e pode ser consultado. Para a consciência latino-americana, ele é mais significativo do que as censuras.
No texto dos bispos há o reconhecimento de que as CEBs não puderam desenvolver-se, apesar do seu valor, e vários bispos lhes fizeram restrições. Agora os bispos querem levantar essas restrições e dar vida nova a essas comunidades pobres.
Mesmo com as restrições do texto final, vale a pena ler atentamente os n. 178 e 179.
Os melhores capítulos do documento são o 7 e o 8, sobre a missão. Ali se acham as afirmações mais fortes.
“A Igreja necessita de forte comoção que a impeça de se instalar na comodidade, no estancamento e na indiferença à margem do sofrimento dos pobres do Continente” (n. 362).
“A conversão pastoral de nossas comunidades exige que se vá além de uma pastoral de mera conservação para uma pastoral decididamente missionária” (n. 370).
“A pastoral da Igreja não pode prescindir do contexto histórico” (n. 367). Veja-se sobretudo os n. 362-370.
A mudança deve afetar todas as instituições da Igreja e começa com a reforma da paróquia. Esta terá de ser subdividida em unidades menores (n. 372), de pequenos grupos com melhor relacionamento. Há que tomar cuidados para que essas pequenas comunidades não reproduzam a estrutura e a atividade paroquial. Mas é muito bom que a conferência faça alusão ao mau funcionamento da paróquia como instituição inadequada para os nossos tempos de urbanização crescente e de secularização.
O capítulo 8 elabora uma pastoral social que vai ser reafirmada e reforçada (nn. 401-404). O documento enumera as novas categorias de pobres que surgiram nos últimos tempos. Enfim, o documento assume desafios contemporâneos: a ecologia e os problemas do meio ambiente e a pastoral urbana. O programa de pastoral urbana é muito completo e define tarefas que vão exigir a colaboração de milhões de pessoas formadas. O desafio dessa pastoral já foi definido por sociólogos católicos no fim do século XIX. Depois de cem anos, a hierarquia assume o desafio. A Igreja católica tem ainda estruturas e mentalidade rurais. Na sociedade rural, a paróquia identifica-se com a sociedade. Agora as coisas mudaram tanto, que a imensa maioria dos cidadãos vive à margem da Igreja e somente recorre a ela no nascimento e na morte ou pedindo a intercessão dos santos nas doenças.
No capítulo 2 há extensa apresentação da realidade latino-americana. Essa exposição recorreu à ajuda de especialistas e cientistas, já que oferece informações bastante completas e pormenorizadas. É um exemplo de colaboração entre a hierarquia e os leigos. No entanto, o documento não chega a condenar o capitalismo e o sistema atual de globalização, embora tenha mostrado todos os seus vícios. Não podia ir mais longe do que a chamada doutrina social da Igreja, tão silenciosa nos últimos tempos.
Evidentemente, nos outros capítulos há também muitos elementos importantes que oferecem orientações para a aplicação do projeto global. Mas um artigo não oferece espaço suficiente para comentar todas essas doutrinas. Com certeza, vão ser publicados comentários extensos do documento de Aparecida para analisá-lo por inteiro.
2. Algumas dúvidas
O projeto de Aparecida é tão radical, que surge uma dúvida: quem vai pôr esse programa em prática? A história mostra que todas as mudanças profundas na Igreja foram realizadas por pessoas novas, formando grupos novos e criando novo estilo de vida, sempre com base numa opção de vida na pobreza. Nunca foram as lideranças estabelecidas nem as estruturas instaladas. Estas não conseguem sair do seu papel tradicional. É o que faz pensar que o clero atual não tem condições para aplicar esse programa.
Nunca me esqueço do sucedido na virada do século XII para o século XIII. Houve uma avalancha de fenômenos religiosos semelhantes à expansão pentecostal contemporânea. Apareceram novos animadores religiosos que logo conseguiram atrair e converter multidões de católicos. Nasceu, em poucos anos, um mundo de comunidades que receberam vários nomes, sendo o de albigenses o mais usado. Ninguém conseguia frear o movimento. O papa Inocêncio III pediu à Ordem Cisterciense, a mais poderosa naquele momento, que assumisse a missão de converter os hereges ou, pelo menos, freasse o movimento em expansão. Foi um fracasso total. Os Cistercienses vinham de mosteiros muito ricos e não sabiam falar aos pobres. Eram missionários ricos, sem capacidade missionária.
Então apareceram, quase simultaneamente, Francisco de Assis, na Itália, e Domingos de Gusmão, na Espanha. Escolheram a via da pobreza, levando uma vida realmente evangélica. Evangelizaram as massas populares do mundo rural e das cidades e conseguiram o que as ordens poderosas não tinham conseguido. Deles nasceram, não muitos anos depois, os chamados Franciscanos (Irmãos Menores) e Dominicanos (Irmãos Pregadores), contados aos milhares em pouco tempo. Eles se instalaram no meio do povo e foram missionários itinerantes, sempre à procura do povo pobre. Deram à Igreja uma fisionomia diferente e representavam nova estrutura, na qual o povo pobre se reconheceu, o que não ocorria no caso das ordens monásticas. O clero paroquial recolheu as conversões feitas pelos mendicantes, mas não fora capaz de fazer aquela mudança necessária.
Na atualidade já há, na Igreja, cristãos que, de modo semelhante, convivem com o mundo dos pobres. Mas eles são pouco conhecidos e pouco valorizados, antes tolerados do que apoiados, porque não correspondem ao esquema oficial: não têm lugar no direito canônico. Em geral são leigos, embora haja também bispos e presbíteros que fizeram a sua conversão, escapando da estrutura em que estavam inseridos.
Pessoalmente, acho que os futuros missionários capazes de mudar a fisionomia da Igreja serão leigos, missionários leigos.
Como é que vai principiar a aplicação do programa de Aparecida? Não poderá realizar-se de cima para baixo. Não poderá começar com um planejamento teórico. Terá início com pessoas voluntárias, dispostas a entrar numa aventura, desta vez com o apoio da hierarquia. Não se lhes dará nenhum programa prévio, porque o Espírito lhes mostrará o que podem fazer. Se o seu agir missionário não proceder de si mesmos, não terá nenhum efeito, porque não será um testemunho humano vivo, o único que pode tocar o coração dos ouvintes.
Não adianta planejar. Ninguém planejou o nascimento ou a vida de São Francisco. Ele apareceu e o papa o confirmou. Nos últimos anos, em muitos lugares, as dioceses realizaram anos missionários, missões populares, sem êxito nenhum. Tudo ficou no papel, porque, em lugar de confiarem a missão a pessoas voluntárias que se sentiam pouco valorizadas, mais toleradas do que apoiadas na sua vocação missionária, a entregaram a agentes de pastoral da estrutura diocesana ou paroquial. Não convém concentrar-se na Igreja paroquial, porque os pobres não a frequentam. Eles percebem logo que a Igreja paroquial não pertence à sua cultura.
Não adianta ministrar cursos para ensinar uma doutrina, porque o Espírito mostrará aos missionários o que devem falar e fazer. Uma iniciativa que se pode ter é acompanhar a espera da voz do Espírito. A hierarquia tem um papel fundamental, que consiste em fazer o discernimento do Espírito à luz da tradição cristã e estimular uma espiritualidade de espera e de fidelidade ao que o Espírito diz.
Na América Latina, o apoio dos bispos e dos padres é essencial. De fato, sobretudo no mundo dos pobres, os católicos são tímidos, inseguros, não confiam nas próprias qualidades. É preciso apoiar, aceitar erros ou fracassos temporários. Não se pode acertar de uma vez. A hierarquia terá de organizar a harmonia entre todos os carismas.
Como será a formação? O que se entende por formação de missionários? A atual formação missionária nos seminários e nas faculdades de Teologia é contraproducente. O sistema atual oferece uma formação acadêmica ou com pretensões acadêmicas. No Brasil, muitos deram muito valor ao reconhecimento dos estudos de seminário pelo Ministério da Educação. Ora, com certeza o Ministério da Educação não tem projetos missionários.
Os certificados oficiais parecem ser garantias justamente para aqueles que não sentem ter uma vocação missionária muito forte. Não tenho nada contra esses certificados acadêmicos, mas eles não têm nada que ver com a missão. A formação acadêmica torna a pregação vazia, sem contato com o povo. Os padres foram preparados para ser pequenos professores de Teologia. Só isso já explica muitas coisas quanto aos problemas da Igreja denunciados pelo documento de Aparecida.
A formação missionária inclui, primeiro, forte e radical espiritualidade concentrada na Bíblia em geral, mas sobretudo nos Evangelhos, isto é, na vida terrestre de Jesus.
Em segundo lugar, a formação consiste em multiplicar os encontros com pessoas, famílias e grupos. O missionário precisa aprender a estar presente em todos os lugares da vida social, como um sinal de vida renovada, animada pela fé, pela esperança e pela caridade. Não se trata de se mostrar nos eventos sociais, mas de conhecer e descobrir as pessoas sensíveis aos apelos do Espírito e saber dizer as palavras que marcam.
A exposição da doutrina jamais converteu alguém. Jesus manifesta-se pela vida de certas pessoas, e não pela doutrina. Não se formam missionários com cursos, seminários ou discussões abstratas. É preciso aprender o linguajar popular. Alguns sacerdotes e alguns bispos sabem fazer isso perfeitamente: são missionários que se tornaram assim pela graça de Deus, superando os esquemas de formação acadêmica que receberam. Um exemplo: frei Carlos Mesters.
A formação por via da doutrinação surgiu depois da Revolução Francesa para assegurar a fé dos sacerdotes, que deviam aprender a resistir às heresias da época. A resistência às heresias deixou de ser uma urgência.
Não posso deixar de assinalar um problema que não é somente de Aparecida, mas de toda a Igreja ocidental, dos concílios ocidentais, dos documentos do magistério, incluindo o Vaticano II: ignorar o Espírito Santo. Claro está que o Espírito Santo é mencionado muitas vezes, também no documento de Aparecida, mas sempre para reforçar o planejamento feito pela hierarquia ou pelo clero em geral. A hierarquia define a conduta da Igreja e, depois, pede ao Espírito Santo que realize o já decidido. Ou se estabelece a suposição de que tudo o que procede da hierarquia procede do Espírito Santo, o que é a mesma coisa. Não adianta rezar para que o Espírito venha iluminar a minha mente se ele está presente no mundo e mostra com sinais claros o que quer.
Os orientais são muito sensíveis a esse aspecto da Igreja do Ocidente. Na América Latina, a Igreja oriental tem pouca presença e quase nenhuma influência. A Igreja latino-americana é filha do Ocidente de modo quase exclusivo.
O ensinamento do Novo Testamento é diferente, tanto na teologia de Paulo como na teologia de João. Para São Paulo, a Igreja é dirigida pelos dons do Espírito Santo (1Cor 12,4-11; 27-30). Ora, o primeiro dom é o dom de “apostolado” (1Cor 12,28). Quando Paulo fala dos apóstolos, não se refere aos doze, mas aos discípulos que, como ele, se tornaram missionários porque foram enviados pelo Espírito Santo.
O dom de governo vem em sétimo lugar. Em segundo lugar, aparecem os profetas, considerados com muita insistência (1Cor 14). Esses dons estão espalhados e de repente aparecem de modo imprevisto. Ninguém preparou nem formou Paulo como missionário. Ele recebeu um dom do Espírito Santo e mostrou um caminho verdadeiro e seguro para o povo dos discípulos que conseguiu reunir.
O Espírito Santo está presente na Igreja atual como sempre. Ele mostra os caminhos do seguimento de Jesus. A teologia de João afirma que o Espírito ensinará o alcance da vida de Jesus nas mais diversas circunstâncias. Jesus não deixou nenhum programa de apostolado, mas prometeu que o Espírito estaria presente para mostrar de que maneira podemos atualizar a vida dele nas mais diversas circunstâncias da história. Jesus não quis encerrar a história num quadro estável, mas prometeu que o Espírito estaria presente para, em cada situação, ensinar o sentido das obras e das palavras que ele realizou ou pronunciou num contexto muito determinado e limitado, na Galileia (Jo 14,26; 16,13-15).
Mas não convém acusar a Conferência de Aparecida, porque toda a história da Igreja do Ocidente foi assim. Uma conversão mais radical ainda seria necessária para voltar ao ensinamento do Novo Testamento sobre o Espírito.
3. Os problemas
A parte mais fraca do documento, a meu ver, é a cristologia. Era de se esperar. Não por acaso a notificação enviada a Jon Sobrino foi publicada na véspera da Conferência de Aparecida. Pois aqui estamos exatamente no maior problema teológico da atualidade: o que significa a humanidade de Jesus? Qual é o significado das palavras e dos atos de Jesus tais como os Evangelhos os relatam? Em que consiste a humanidade de Jesus? O que é ser homem?
O texto lembra muitas coisas bonitas tiradas dos Evangelhos, que o mostram como mestre de sabedoria e revelador de um modo de vida a ser imitado pelos discípulos. É uma enumeração de atos e palavras belas da vida de Jesus. Falta a síntese e aquilo que reúne todos esses ditos e fatos numa vida humana (nn. 129-135).
Essa enumeração não diz o significado da vida humana de Jesus, ou seja, do seu ministério missionário. A vida dos seres humanos deve ser interpretada segundo o contexto histórico em que ela se situa. Aqui, não se fala do contexto histórico como se Jesus estivesse fora da história, como um mestre que voa por cima dos séculos. Cada ser humano constrói a sua vida no contexto histórico que o provoca e o leva a definir as suas opções quanto aos fins e aos meios. Cada um tem um projeto, atribuindo à sua vida uma finalidade. Se Jesus foi homem, ele deve ter sido assim.
Comecemos pelo anúncio de Jesus: o reino de Deus (nn. 101-128). O que foi que entenderam os camponeses da Galileia quando Jesus lhes falava do reino de Deus? Eles estavam sofrendo o jugo pesado do reino de Roma, do reino do imperador. De repente, Jesus vem anunciar que esse reino vai cair. Era exatamente o que todos esperavam, ao menos os pobres oprimidos pelo poder duríssimo dos romanos. A maioria pensava que isso sucederia somente num mundo novo, depois de este mundo ser destruído de acordo com as previsões apocalípticas. Jesus vem anunciar que aquilo sucederá neste mundo. O reino de satanás, encarnado no poder romano, vai cair e virá outro reino. Jesus bem sabia de todas as conversas, queixas e esperanças do seu povo. Ele falava para essas pessoas. Compreende-se que foi acolhido e aclamado pelo povo simples da Galileia com entusiasmo.
Depois desse anúncio, Jesus teve de explicar como seria o reino de Deus e a diferença radical entre esse reino e o reino de César. Até os doze tiveram muita dificuldade em aceitar as explicações de Jesus.
O que não aparece no documento é que o evangelho de Jesus foi boa nova para alguns e má notícia para outros. Jesus não tratou a todos da mesma maneira. A boa nova dirige-se aos pobres e a má notícia aos ricos (Lc 6,20-26). O evangelho de Maria seguiu na mesma linha: “Depôs poderosos de seus tronos e a humildes exaltou. Cumulou de bens famintos e despediu ricos de mãos vazias” (Lc 1,52-53).
Na base da psicologia de Jesus estava a compaixão pelos oprimidos e a indignação contra os opressores. Por que isso não aparece num documento que pretende renovar a opção pelos pobres? Há uma contradição entre a segunda e a terceira parte do documento.
Em segundo lugar, não aparece o conflito com os chefes da nação, que Jesus denuncia como usurpadores e opressores. O que ocupa um lugar fundamental nos Evangelhos não aparece: o conflito de Jesus com os sacerdotes, os doutores da lei, os fariseus, os grandes daquele tempo (Mc 11-13; Mt 23; Lc 20; Jo 8). Esse conflito é o fio condutor dos Evangelhos. Todos apresentam a missão de Jesus como caminho para a morte. Desde o início, os chefes querem matá-lo. Jesus denuncia a dominação dos grandes associados aos romanos e permanece fiel a essa missão da sua vida até que o matem.
Sua morte foi a consequência da sua ação, a conclusão do seu ministério. O documento fala de Jesus que fez o dom da sua vida (n. 139). Ele foi morto porque quis ser fiel à missão de denunciar a corrupção dos chefes do seu povo, que impunham um jugo insuportável à gente simples. Jesus era judeu e, como tal, estava escandalizado pelo uso que os chefes faziam da Lei. Ele queria libertar o seu povo da mentira e da dominação das elites. Com a sua interpretação da Lei, as elites oprimiam o povo dos pobres.
Esse foi o projeto de Jesus. O que ele oferece aos seus seguidores é repetirem a mesma trajetória em todas as épocas da história. Ora, no centro da missão está a perseguição e a morte de cruz, uma morte infamante.
O documento faz apenas algumas alusões muito discretas à morte de Jesus, sem dizer por que morreu e o significado humano dessa morte.
O texto alude aos mártires da América Latina, mas sem explicar em que consistia esse martírio (n. 140), como se fosse um valor em si, um exemplo de vida heroica. Não situa os mártires no seu contexto histórico, o que revela uma compreensão semelhante no caso da morte de Jesus, como se fosse um exemplo de virtude sem motivo, sem ligação com o seu ministério de profeta.
O documento simplesmente diz que Jesus ofereceu a sua vida. Isso pode significar muitas coisas, mas não evoca o contexto histórico e o lugar dessa morte na vida humana de Jesus.
Nos Evangelhos, a cruz está no centro da cristologia da vida humana de Jesus. Ela não está no centro da cristologia do documento. Temos a impressão de que o texto quis evitar qualquer referência ao conflito com os romanos e com as autoridades de Israel. É um evangelho sem conflito, de pura bondade. Por que um evangelho sem conflito? Para não ter de reconhecer o sentido do martírio de tantos latino-americanos crucificados na segunda metade do século XX. As elites querem ocultar sua responsabilidade histórica nesses martírios. A lembrança deles ofende as classes dirigentes de muitas nações.
Por isso as alusões aos mártires são muito discretas. Eles são apresentados como heróis, mas não se diz por que morreram. Um evangelho sem conflito: quem quer isso? É exatamente esse o evangelho que satisfaz a burguesia. Tal cristologia é burguesa na sua inspiração. Não exprime o que sentem os pobres e de que maneira entendem a vida e a morte de Jesus. Estamos na situação de conflito entre duas cristologias, uma burguesa e outra dos pobres. Esse conflito existe desde o início da Igreja. A mesma falta de historicidade se acha na descrição da realidade eclesial, na primeira parte. O texto faz uma enumeração dos aspectos positivos e negativos da Igreja latino-americana (n. 98-100). Não se procura situar tanto os aspectos positivos como os negativos no contexto histórico. É como se tudo fosse de igual significado.
Não se faz nenhuma análise das estruturas. O texto atribui a responsabilidade e a culpa a “alguns católicos que se afastaram do evangelho” (n. 100h). Os aspectos negativos são devidos a “deficiências e ambiguidades” de alguns dos membros (da Igreja). Se esse fosse o problema, não teria sido necessário reunir toda uma conferência continental. Bastaria enviar um bom confessor a esses poucos católicos.
De modo geral, os documentos da Igreja não questionam as estruturas. Ora, com certeza os membros da Igreja não são piores agora do que antes. O problema não são as pessoas, mas as estruturas. Algo disso aparece implicitamente na terceira parte, por exemplo, quando se trata da paróquia. Mas uma análise mais profunda seria muito útil. Um dia terá de ser feita.
Surpreendente é o silêncio quase total sobre os movimentos pentecostais. Há apenas algumas breves alusões (n. 100g). Um dia Harvey Cox escreveu que se tratava do fenômeno religioso mais importante do século XX e quase tão importante quanto a Reforma do século XVI. Não se faz nenhuma análise dessa realidade, como se fosse algo sem importância e não problemático.
No entanto, o pentecostalismo está em plena expansão em todos os continentes e também na América Latina. Muitos católicos deixam a Igreja para integrar uma comunidade pentecostal. Os pastores são inumeráveis. Em vários lugares do mundo dos pobres, os pentecostais já são mais numerosos do que os católicos.
Seria necessário analisar as razões desse êxito. Sem dúvida, o pentecostalismo responde às aspirações de grande parte do povo. Vale a pena estudar sua mensagem, sua metodologia, suas formas de organização. Fechar os olhos, como se o fenômeno não existisse, pode significar a “política do avestruz”.
Quando se faz a descrição da sociedade atual, principalmente da cultura contemporânea, muitos se esquecem de que há duas sociedades muito separadas e duas culturas bem diferentes. Há a cultura examinada pelos cientistas e filósofos — a cultura dos incluídos na nova sociedade — e a cultura dos excluídos.
Assim mesmo, a Conferência de Aparecida representa um acontecimento imprevisto. Nasceu nova consciência. Os bispos recolheram as aspirações da minoria mais sensível aos sinais do tempo. O documento final constitui um motivo de renovada esperança para os velhos e oferece algumas orientações bem definidas aos jovens.
Pe. José Comblin