Publicado em número 254 - (pp. 16-22)
Fé e política se abraçarão
Por Prof. Dr. Fernando Altemeyer Júnior
I. A crise de paradigmas
Estamos vivendo uma grande e importante crise de culturas e de civilizações, fato histórico que exige radical mudança de paradigmas, analíticos, antropológicos e religiosos.
A política vista e compreendida como espaço de tomada de decisões, pessoal e coletivo tem como base a racionalidade, particularmente a cartesiana e a científica. Não se admitiu nos últimos dois séculos e meio a compaixão e as expressões estéticas ou musicais, como também constitutivas do “éthos” livre e solidário que produz uma sociedade fraterna. Afirmou-se o “Lógos” negando-se o corpo. Propôs-se a política do Estado e negou-se a política do sujeito concreto. Criou e aprofundou-se a dicotomia antropológica e o fosso entre as classes e os países no mundo e no submundo. Em certos países a ideologia dominante negou a pessoa em favor da mercadoria.
A palavra política perdeu a beleza e ficou nua (assim como o rei e os políticos). Chegamos ao desencanto e à vergonha. Negando-se o corpo e o sujeito político, negou-se a pessoa em nome do liberalismo econômico. Liberdade política tornou-se privilégio de poucos e negação de muitos.
A partir do século XVIII com a Revolução Francesa 1789, a liberdade se torna direito a ser vivenciado só por homens e de certa elite social. A constituição da cidadania burguesa baseada no tripé: liberdade, igualdade e fraternidade; construiu a modernidade ocidental e criou expectativas de desejos e de uma sociedade de consumo traumatizada.
“Riqueza e penúria são apenas as duas faces de uma mesma moeda; os grilhões da necessidade não precisam ser de ferro, podem ser feitos de seda.” (Hannah Arendt. Da revolução. São Paulo: Ática/UnB, 1988, p. 111.)
A política capitalista foi questionada pelo modelo socialista, do Leste Europeu, Cuba e de alguns países africanos e por culturas milenares, africanas e asiáticas, particularmente de corte islâmico e budista. Entretanto, a crise do modelo socialista gerou novo impasse. A hora é de transfiguração pela mesma política.
“Não podemos desesperar. A razão deve ser suficientemente forte para pensar ela mesma sua superação e se recolocar a serviço da vida. E a vida deve ser suficientemente sábia para aceitar a lei da realidade e não querer senão o que é racionalmente possível. Mas existe na vida um princípio que vai mais longe que ela mesma; ele pode se voltar contra ela para destruí-la, ele pode também acolhê-la e transfigurá-la. Mas o segredo desta transfiguração não é nem da razão, nem da vida. O que advém da liberdade, somente a liberdade pode dizer. Pois, a linguagem da liberdade é, uma linguagem escondida” (Jean Ladriere. Vie sociale et destinée. J. Duculot, Gembloux, 1973, p. 225).
Assim podemos compreender porque particularmente nestes dois últimos séculos, o Ocidente segundo Roger Garaudy torna-se um “acidente”.
“Essa maneira de os ‘ocidentais’ considerarem o indivíduo como o centro e a medida de tudo quanto há, de reduzir toda realidade ao conceito, isto é, de erigir em valores supremos a ciência e as técnicas como meio de manipular as coisas e os homens, é uma exceção minúscula na epopeia humana de três milhões de anos” (Roger Garaudy. O Ocidente é um acidente — por um diálogo das civilizações. Rio de Janeiro: Salamandra, 1978, p. 1).
O novo nome da política deve ser liberdade e libertação. Assim o proclamou solenemente a Teologia na América Latina.
A libertação assume caráter essencial da própria pessoa humana e esta mesma libertação constitui-se como ato soberano do sujeito popular. É verdade que esta liberdade cristalizada no neoliberalismo escravizou centenas de culturas e classes subalternas diante da hegemonia global do Mercado Total, este sim, livre e absoluto. Verificamos também que mulheres, crianças e negros ainda não sabem no cotidiano da vida o que este vocábulo significa em termos de dignidade e respeito de sua cidadania. Torna-se, portanto, lapidar, a fala do Papa João XXIII, que afirma que as bases inseparáveis de uma nova civilização, são quatro: justiça, liberdade, paz e solidariedade. As quatro somadas e não isoladas, poderão garantir uma verdadeira democracia.
Necessitamos de uma outra base para a política, e cremos ser fundada numa ética dos pobres e na rejeição do fatalismo e da discriminação.
“A recriação da ética pelos novos movimentos sociais está apontando para novos estilos de vida. Há, hoje, a emergência de um anseio profundo de liberdade na esfera da realização das pessoas, a partir do mundo das aspirações e dos desejos; um senso muito profundo do direito à diferença, à alteridade; um sentido novo das experiências comunitárias em tensão entre o planetário (procura de universalização) e o pequeno (emergência e reconhecimento do pluralismo social e cultural); a redescoberta do sentido do prazer, da gratuidade, da celebração e da fantasia, que inclusive questiona a ética moderna do trabalho e a relação do homem com a natureza; a abertura de novos espaços para a experiência do sagrado na vida humana” (CNBB, Ética: Pessoa e Sociedade, Paulinas, São Paulo, nº 64, pp. 27-28).
Assim as recorrentes noções da “liberdade de” (assumida como livre-arbítrio) e da “liberdade para” (assumida como o conjunto das leis morais e da convivência ética), transformaram-se após a dura experiência das duas grandes guerras mundiais, numa exigência global de plena liberdade política e social, chamada cidadania — a POLITEIA dos gregos, vivida plenamente na política (descrita nas obras de Platão e Aristóteles).
“Quando ela se exerce pela força, poderemos chamá-la tirânica, e quando seus préstimos, livremente oferecidos, são livremente aceitos pelo rebanho dos bípedes, poderemos chamá-la política” (Platão, Político, 276e, in: Pensadores, vol. III, Abril Cultural, São Paulo, 1972, p. 231).
A expressão teórica da liberdade ganhou carnalidade e exigência ética, particularmente na América Latina, mas também em lutas memoráveis na África do Sul e Sri-Lanka. Hoje a liberdade deve coligar-se à defesa da vida dos pobres e dos excluídos pelo atual sistema de morte neoliberal justificado pela ideologia da satisfação burguesa, hoje massificada pela mídia eletrônica.
II. A vida dos pobres: O critério da fé cristã
A vida continua sendo nosso grande paradigma, e podemos nos lembrar do grande Hipócrates: “Que o teu alimento seja o teu remédio, e, que o teu remédio seja o teu alimento”.
Mas, lembram-nos as boas nutricionistas que há uma segunda chave para defender e servir à vida: “A qualidade é dada pela variedade”. Assim não é demais relembrar que a questão da variedade (não dispersão, nem confusão, nem centralismo) é essencial para a saúde de nossa prática da liberdade.
Nossos alimentos estarão de fato nos fortalecendo em nosso serviço?
Assumimos os quatro pilares da vida democrática (liberdade, solidariedade, paz e justiça social) em nossos projetos e práticas cotidianas? Somos prisioneiros das estruturas? Caminhamos para o centralismo, em nome da liberdade? Esta era importante pergunta do Professor Souza Martins ao Frei Betto sobre a criatividade e a imaginação:
“A constituição de uma central de movimentos populares retira deles a vitalidade que lhes é própria, a criatividade e a imaginação tão necessárias à renovação social e política de uma sociedade como a nossa. Penso que um caminho poderia ser o da criação de um grupo de avaliação e acompanhamento das organizações populares, que pudesse reconhecer as peculiaridades dessa forma de expressão das demandas sociais” (José de Souza Martins, “Carta ao Frei Betto”, in: Quinzena 168, CPV, mimeo, São Paulo, 31/8/1993, p. 18).
Trabalhamos com profissionalismo e dignidade, dentro de nosso próprio dia a dia? Somos profissionais de que e a serviço de quem? Esta é uma pergunta que nasce do próprio campo da fé cristã. É uma pergunta de valores e ética coletiva. Como conciliar o serviço voluntário, sempre presente, e uma decidida, inteligente e articulada ação transformadora que seja eficaz?
Somos desafiados por nossa própria prática a nos repensar, a viver sempre em movimento, e a melhor compreender nosso papel na humanização do humano situado neste contexto desumano. Qualquer recente visita a um hospital público, ou mesmo a uma escola, nos deixa imediatamente impactados. Dramaticamente impactados.
Face aos atuais milenarismos que ressurgem, muitos pensam que já chegamos ao fim do mundo. Ou, pelo menos, ao fim do Brasil enquanto projeto de nação. Querem excluir-se do país ou temem lutar por uma resposta coletiva. É a filosofia do “cada um por si” que faz virar sucesso, mediocridades como os programas do mundo televisivo. Será tudo uma loteria solitária ou existem caminhos comunitários? Por onde caminhar? Que respostas oferecer aos diferentes contextos sociopolíticos com os quais nos confrontamos? Muitos falam de risco e de alternativas, mais quais são elas efetivamente, para além de palavras e discursos.
Ecoa ainda em nossos ouvidos a voz inspirada de Simone de Beauvoir:
“Palavras; é tudo o que eles tinham a me oferecer: a liberdade, a felicidade, o progresso; é desta carne oca que se alimentam hoje em dia” (Simone de Beauvoir, Tous les hommes sont mortels, Gallimard, Paris, 1946, p. 369).
Mas, felizmente, existe outro caminho.
Em visita que fiz a uma favela na Baixada Fluminense, em Nova Iguaçu, com o incrível nome de Lírio do Vale, presenciei como a vida se bate cotidianamente com a doença e a miséria. Gente de fé realiza o ato do amor cristão. De forma concreta e solidária. Como testemunha dos valores que recebeu de Deus em suas vidas. Lá dentro da favela, mulheres se organizam, batalham e fazem surgir pequenas sementes de comunhão, sensibilização e organização popular. Junto às crianças e aos adultos. Em meio às múltiplas dificuldades, brota um lírio naquele Vale de Lágrimas. Este exemplo que não é único estimula e muito! Pois a chave de nossa política é esta: vir de baixo, construir a partir dos pequenos.
Outra visita feita à Casa Vida em São Paulo, lugar de convivência de crianças portadoras do vírus HIV, me fez perceber com agudeza, que é preciso que quem vive a fé e a política em favor das crianças, particularmente daquelas situadas em realidades de conflito, reveja com frequência sua ação, sua emoção e sua espiritualidade (motivação). Tempos de ausculta e silêncio necessitam impor uma interrupção nas gélidas agendas. A eficácia não pode matar a gratuidade.
O caminho da fé cristã assume os riscos do cotidiano e reabastece sua esperança na celebração da Ceia do Senhor.
III. Fé e Política se abraçarão
Vários movimentos e instituições no Brasil assumem o abraço fecundo da fé e da política.
O Movimento de Defesa dos Direitos Humanos, e entre eles o Centro de Defesa de Campo Limpo na cidade de São Paulo, que chegou agora aos 25 anos de existência, geraram pessoas novas e novos relacionamentos. Ocorreram novidades e sofrimentos. Nos Centros de defesa, as pessoas, situações, lugares e momentos fortes valorizam momentos especiais do cotidiano. Este o momento da fé.
Para que isto aconteça harmoniosamente é preciso que cada um de nós saia desta roda infernal do ativismo. Que com frequência religiosa, cada servidor do povo, encontre as pessoas (através de visitas gratuitas e não para marcar novas reuniões!), repense as situações que viveu e vive, amplie horizontes dos lugares que ocupa e transita, e, viva com alegria e coragem os momentos fortes que lhe são reservados, e para os quais, às vezes, nem preparados estamos. E compreenda que nem todos viveram o que você viveu, que é fundamental partilhar com paciência e ternura. Não crescer sozinho, mas com os outros e como as árvores.
A palavra sobre a fé política, neste século XXI, não virá de soberanos e superiores argumentos de autoridade, mas da sapiencial e profunda experiência do próprio serviço em favor da vida. Deste diálogo fecundo entre a fé e a política.
Esta difícil aventura da busca da justiça e da verdade indicará alguns princípios concretos para a ação de nossos irmãos e sujeitos de transformação.
Este renovado esforço de libertação, efetuado no cotidiano da humanidade sofredora, redescobrira pela força da liberdade, novos segredos do viver. Graças a esta sua contribuição humilde e, propositalmente não arrogante, os movimentos sociais e pastorais podem, ao lado de outras mulheres e homens, felizes e renovados, na fidelidade ao povo, recriar solidariamente a história e seu sentido. Perder tempo e sono pelos outros.
Podemos recriar, enfim, gente nova, um Brasil fundado e vivido na ética e na verdade, e cada dia gerarmos vida nova, plena de direitos, e germinalmente cidadã, como nos dizia os antigos: “Incipit vita nova”.
Será, sobretudo, necessário termos em conta os novos fenômenos produzidos pelo neoliberalismo, como bem nos mostra a análise de Leonardo Boff:
“No neoliberalismo, por causa da modernização e da competitividade, está presente uma lógica da exclusão. Os países do Sul, tecnologicamente atrasados, sem suficiente competitividade, com crises políticas internas devido à pobreza e à miséria, não são mais interessantes. Por isso, há neles pouquíssimos investimentos estrangeiros. Nós não valemos, porque estamos fora do mercado. Quem está fora, não existe” (Leonardo BOFF, “O Cristianismo e a nova ordem mundial”, in: Jornal O Estado de S. Paulo, São Paulo, 15/8/1993, p. 3).
Entrementes, o próprio Boff, apresenta uma esperança concreta e palpável:
“Acreditamos nas revoluções moleculares. Como as moléculas, a menor porção de matéria viva, garantem a sua vida pela relação e articulação com outras moléculas e com o meio ambiente, as revoluções devem começar nos grupos e comunidades interessadas em transformações. Nos grupos transformam-se as pessoas, suas praticas e suas relações com a sociedade circundante. E a partir daí, podemos começar a inundar espaços mais amplos da sociedade” (Leonardo Boff, “O Cristianismo e a nova ordem mundial”, in: Jornal O Estado de S. Paulo, São Paulo, 15/8/1993, p. 4).
Mas, os desafios para realizar qualquer revolução molecular, são enormes, pois, como o afirma Michel Henry:
“Quando, portanto, o trabalho se encontra progressivamente excluído de uma dada sociedade, como é o caso da nossa, não é somente a forma desta sociedade que é subvertida, mas a própria existência do homem. Como e por que se produz esta exclusão progressiva do trabalho? É o que aparece atualmente evidente: é a substituição da atividade humana por um dispositivo instrumental objetivo cada vez mais complexo, que reduz sem cessar a parte do trabalho vivo, no seio do processo de produção de bens úteis à vida” (Michel Henry, “Réinventer la culture”, in: Le Monde des Débats — nº 11, Paris, set., 1993, pp. 3-4).
O filósofo francês insiste:
“Necessitamos hoje uma nova cultura para um mundo novo. Por que não? Mas, uma cultura não se fabrica, não se constrói como um computador. Ela vem de longe, ela esta lá desde sempre, incluída na vida como o logos que ela porta em si desde o princípio, como a vontade de viver, de se revelar e de realizar a si mesma – como esta atividade primordial de autotransformação e de autocrescimento, que não é senão um com ela e que se denomina “trabalho”. Mas, quando a essência da vida é excluída e seu poder é usurpado pelo reino cego do que nada sente, nem a si mesmo, é a cultura que desaparece. E a tarefa não é nada fácil atualmente se se trata da humanidade doar-se novamente uma cultura, num mundo onde o princípio consiste em sua eliminação” (Michel Henry, “Réinventer la culture”, in: Le Monde des Débats — nº 11, Paris, set., 1993, p. 4).
IV. OS PRINCÍPIOS NORTEADORES
Algumas marcas profundamente inovadoras, nesta nossa busca de concretizar as revoluções moleculares e estar atentos à reinvenção da cultura, na luta pela liberdade dos excluídos, no serviço à vida, inspiram-se no cumprimento de alguns princípios de base:
“1. estímulo à organização do povo;
2. lutar para garantir a plena vigência dos direitos humanos;
3. incentivar e garantir a autonomia dos movimentos sociais;
4. ter claro o seu papel, suas limitações e potencialidades, e enfim;
5. combater toda forma de discriminação.”
Alguns sinais históricos comprovam o cumprimento destes princípios:
a) Multiplicação de ONGs na base popular espalhadas pelos quatro cantos do país e de grupos de reflexão, particularmente no mundo rural e nas periferias urbanas.
b) Releitura da vida e da sociedade brasileira com novos óculos, vendo em cada pessoa humana, de maneira popular e comprometida, um companheiro e irmão de vida e de utopias, tomando em nossas mãos, lutas fundamentais, como os Projetos Populares, a democracia direta, a batalha pela Reforma Agrária, a defesa das Crianças e Adolescentes, da imprescindível vida dos indígenas.
A ação política dos cristãos foi oferecendo aos jovens e ao povo, o saboroso caldo de uma nova e velha cultura, forjada fora dos padrões e controle da mídia televisiva, e muitíssimo mais suculenta, pois fruto da própria beleza e desta esperança persistente, deste nosso povo que é negro, índio e migrante.
c) O engajamento diante dos clamores populares, sobretudo nas graves e permanentes questões da moradia, da saúde e do desemprego, através de gestos concretos de misericórdia e compaixão com as dores reais das pessoas, foram sendo assumidos pelos companheiros e, articuladamente pelo movimento social, através da criação de tantos Programas de Formação (metodologia da práxis), de comunicação, e, do programa de enfrentamento da violência em prol da cidadania ativa.
“A ação como disciplina da compaixão requer a disposição em responder às concretas necessidades do momento” (Donald McNeil, Compassion — A reflection on the Christian Life, Image Books-Doubleday, Nova York, 1982, p. 118).
Quero citar quatro vidas exemplares, que falam por si deste engajamento entre fé e política: uma religiosa chamada Ir. Dalva Ivete de Jesus, que trabalha há anos na pastoral do povo das ruas de São Paulo, na região central; um padre, que oferece seu carinho e amor aos jovens e crianças, conhecido como Vigário do Povo da rua, Padre Júlio Renato Lancellotti; e, em nível institucional mais amplo, os doutores Hélio Pereira Bicudo e Dalmo de Abreu Dallari, sempre presentes na defesa internacional dos direitos dos pobres. Exemplos que interpelam pela perseverança, transparência, e porque possuem a força de quem vive com honra a fé no Cristo Jesus.
d) A vivência e a proclamação de uma ética existencial, pessoal e comunitária, traduzida em atitudes de respeito ao pluralismo, e revestida das profundas convicções do valor da vida humana, pelo anúncio corajoso da vida humana e ecológica, apesar de toda a lavagem cerebral conduzida por tantas ideologias da elite e, difundidas por programas radiofônicos, que se espalharam pelo Brasil.
O movimento social dos cristãos comprometidos nas CEBs e nas pastorais sociais, felizmente, bebe de outras fontes. Ele se alimenta da força do pequeno que acredita “que o mundo será melhor quando o menor que padece acreditar no menor” e das pessoas de boa vontade dispostas a salvar a vida de quem a tem por um fio. Somos daqueles que acreditam que os pobres nos julgarão.
“A existência de milhões de empobrecidos é a negação radical da ordem democrática. A situação em que vivem os pobres é critério para medir a bondade, a justiça e a moralidade, enfim, a efetivação da ordem democrática. Os pobres são os juízes da vida democrática de um país” (CNBB, Exigências Éticas da Ordem Democrática, Paulinas, São Paulo, nº 72).
Assim, a cada dia novos desafios estão nos sendo lançados. Recentemente com o crescimento da miséria e o aumento de Igrejas pentecostais da vertente da prosperidade individual houve uma revalorização de questões esquecidas e hiper-valorização de certos temas.
Precisamos com urgência conversar e trabalhar a questão do corpo e das práticas e discursos destas Igrejas e, confrontar com nossas próprias respostas.
Será preciso rever nosso vocabulário sem perder nossa utopia e ética comunitária.
“Não está na pauta dos cultos dessas igrejas o papel de ‘salvar as almas’, mas de libertar o corpo. Entende que é necessário libertar o homem dos males que estão alojados no seu corpo. Não que o corpo seja ruim, mas algo que está nele. Com esta preocupação, leva-os para um outro ponto. O seu culto é um lugar onde o corpo está presente, com seu cansaço ou com sua alegria” (José Rubens L. Jardilino, Sindicato dos Mágicos, CEPE, São Paulo, 1993, p. 32).
Devemos a cada dia aprender a ser gente, mais gente, e profundamente humanos. Tarefa óbvia, à primeira vista, mas que custará toda a nossa existência para realizar-se. E qualquer pequeno passo é fundamental, pois cada descoberta pessoal e coletiva já é um passo na afirmação do humano renovado.
“O capitalismo criou uma cultura do eu sem o nós. O socialismo criou uma cultura do nós sem o eu. Agora precisamos da síntese que permita a convivência do eu com o nós. Nem individualismo nem coletivismo, mas democracia social e participativa” (Leonardo Boff, “O Cristianismo e a nova ordem mundial”, in: Jornal O Estado de S. Paulo, São Paulo, 15/8/1993, p. 3).
Esta nossa tarefa incessante, pessoal e estrutural, alimenta-se e enraíza-se nas outras pessoas que conosco caminham, particularmente naqueles que a sociedade mais despreza e calunia, muitas vezes, no desejo hipócrita, de torná-las bodes expiatórios. Entre nós, cidadãos conscientes e a humanidade empobrecida existem laços indestrutíveis e invioláveis, semelhante aos que unem as pessoas religiosas a Deus.
Não somos, nem queremos ser salvadores da pátria, mas nos sentimos tocados e feridos, quando qualquer pequenino é ferido ou tem seu direito vilipendiado. É como se fôssemos todos artérias fundamentais de um mesmo sistema sanguíneo. Interligados e complementares. Interdependentes.
V. O FUTURO DE UMA FÉ LIVRE E COMPASSIVA
A palavra de esperança culmina em festa e na ceia do Cristo, onde o próprio povo oferece como alimento sua vida e seus sonhos, e nesta sua louvação afirma a própria vida e sua luta de resistência. E descobre o sentido da vida na ressurreição de Jesus de Nazaré.
Cremos na festa da vida e do viver, fazendo com mãos, mentes e corações que o humano mergulhe na alegria infinita. Verdadeira explosão de potencialidades. Este mergulho na festa dos pobres é vivido nas Igrejas inseridas nas classes populares, ao defenderem a vida e experimentarem os segredos e mistérios desta fé mística. E é vivido também por todo aquele que sabe partilhar e amar. Pois quem ama, conhece o sabor da festa e da alegria.
Creio que nenhum companheiro ou companheira pode abdicar desta necessidade imperiosa de celebrar com os pobres suas festas e suas alegrias, do jeito do povo e com suas melodias. Entrando pela porta da cozinha, brindando aos companheiros e até para os santos! Crendo em horizontes escatológicos.
“A dinâmica da existência histórica é de essência escatológica. Mas, se é assim, é porque pertence à essência do ser humano determinar-se teleologicamente” (Jean Ladriere, Vie sociale et destinée, J. Duculot, Gembloux, 1973, p. 135).
À guisa de conclusão, diremos que sem esta viva e necessária compaixão, inspirada na comunhão, os pobres retornariam à submissão. Mas a compaixão, sem esta pratica libertadora, tornaria o militante cristão uma pessoa estéril e burocratizada, como algumas associações e grupos já cooptados, e, completamente dependentes do poder ou do dinheiro de projetos estatais ou de agências do exterior.
Na defesa da vida dos pobres, busca superar rivalidades secundárias diante de outros atores históricos, forjando redes e, vibrando interiormente com a causa dos pequenos, especialmente das mulheres, dos negros, dos índios e das crianças. Redes de movimentos sociais articuladas organicamente. Assim cumpriremos a profecia de MEDELLÍN: “A justiça e, por conseguinte, a paz conquista-se por uma ação dinâmica de conscientização e organização dos setores populares, capaz de urgir os poderes públicos, muitas vezes impotentes em seus projetos sociais, sem o apoio popular” (CELAM, Conclusões de Medellín: A Igreja na atual transformação da América Latina à luz do Concílio, capítulo 2, n. 18, Vozes, Petrópolis, 1985, p. 62).
E ficaremos surpresos diante do ser humano:
“Que quimera, portanto, é o homem? Que novidade, que monstro, que caos, que sujeito de contradição, que prodígio! Juiz diante de todas as coisas, imbecil verme da terra; depositário do verdadeiro, cloaca de incertezas e de erros; glória e refugo do universo” (Blaise Pascal, Pensées, GF-Flamarion, Paris, 1976, p. 173).
Se o mistério do humano, sempre presente em nossa reflexão, exige uma atitude de escuta e de silêncio contemplativo, esta atitude deverá também nos permitir viver a dinâmica entre clareza e penumbra. Assim canta o poeta catalão: “O amor é como um mar alvoroçado de ventos e ondas, sem porto nem margem. Morre o amigo no mar; e no perigo morrem também seus tormentos e nasce sua realização” (Raimundo Lulio, Livro do Amigo e do Amado, Loyola, São Paulo, 1989, p. 103).
A modéstia será nossa mais importante qualidade. Necessitamos, no Brasil de agora, como nunca, de abundante vida, de contagiante beleza e emocionante compaixão.
Esta sede de infinito vivida pelas pessoas que têm fé no humano é nosso tesouro, como nos indica Dostoievsky:
“Toda a lei da existência humana consiste em poder sempre se inclinar diante do infinitamente grande. Tire dos homens, a grandeza infinita e, eles cessarão de viver e morrerão no desespero. O imenso, o infinito é tão necessário ao homem, quanto o pequeno planeta sobre o qual ele habita” (Theodor Mihailovic Dostoievsky, Les possédés, T. II, trad. do russo por Victor Derély, Librairie Plon, Paris, 1886, p. 347).
Prof. Dr. Fernando Altemeyer Júnior