Roteiros homiléticos

24 de agosto – 21º DOMINGO DO TEMPO COMUM

Por Pe. Johan Konings, sj

A RESPONSABILIDADE DE PEDRO

I. INTRODUÇÃO GERAL

O acento principal da liturgia de hoje está no “poder das chaves”, confiado ao líder dos primeiros discípulos de Jesus, Pedro apóstolo. A chegada do papa Francisco mostrou a importância do serviço que o bispo de Roma exerce para o bem da Igreja e do mundo. É um exemplo de poder-serviço, o oposto do poder pelo poder, fenômeno que tão facilmente se infiltra nas estruturas deste mundo. A comunidade de Jesus deve mostrar uma alternativa.

II. COMENTÁRIO DOS TEXTOS BÍBLICOS

1. I leitura (Is 22,19-23)

A primeira leitura narra a missão de Isaías junto a Sobna, prefeito do palácio (a cidade-templo de Jerusalém), para o depor do cargo e instalar no seu lugar Eliacim, filho de Helcias, “pondo sobre seus ombros as chaves da casa de Davi” (v. 22). Ao prefeito ou mordomo do palácio cabia a tarefa de admitir ou recusar as pessoas diante do rei, como também a responsabilidade de sua hospedagem; daí ele ser chamado de “pai para os habitantes de Jerusalém”: aquele que dirigia a casa. Os oráculos contra o prefeito do palácio, Sobna (cf. também Is 22,24-25), estão, na verdade, um tanto deslocados no livro de Isaías. Encontram-se inseridos no meio dos oráculos contra as nações pagãs. Não pertencem ao Isaías original, mas refletem o interesse de promover a figura de Helcias, homem de confiança do rei Josias, por volta de 620 a.C. Lembram que o “poder das chaves”, isto é, a administração da família real, tinha sido transferido de Sobna para Eliacim.

2. Evangelho (Mt 16,13-20)

O evangelho de hoje põe em cena a profissão de fé em Jesus como Messias. Jesus, primeiro, indaga a respeito do que o povo diz sobre ele e, depois, pergunta aos doze apóstolos: “E vós, quem dizeis que eu sou?” (v. 15). Simão toma a palavra e responde, certamente em nome dos outros: “Tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo” (v. 16). Por isso, Jesus confirma Pedro na sua função de porta-voz da fé eclesial. Ele será, até o tempo da parusia, o rochedo, o fundamento firme da Igreja, que deverá resistir a muitas investidas.

Jesus felicita Pedro, porque ele falou o que Deus lhe revelou (“não carne e sangue, mas meu Pai que está no céu”, v. 17). Depois, dá a Simão um nome novo, que em aramaico soa Kefas e em grego, Pedro. Significa “rocha”. Na mesma frase, Jesus compara a Igreja a uma cidade contra a qual a outra cidade, chamada de “portas do inferno”, não tem poder algum. E confia a Pedro as chaves dessa cidade. À luz da primeira leitura, podemos dizer que Pedro é o “prefeito” dessa cidade. Ele tem o poder de ligar (= ordenar, obrigar) e de desligar (= deixar livre), portanto, o dom do governo, ratificado por Deus: o que o responsável faz aqui na terra, Deus o ratifica no céu.

Nesse relato, os v. 17-19, dedicados a Pedro, são típicos de Mateus. Não aparecem no texto paralelo de Marcos (Mc 8,27-30). Mateus traz ainda outros textos sobre Pedro que os outros evangelhos não trazem (por exemplo, Mt 14,28-31, no evangelho de domingo retrasado). Mateus insiste que Pedro é quem responde pela fé da Igreja. Este é o “carisma” de Pedro, não uma inspiração de “carne e sangue”, mas um dom de Deus mesmo (Mt 16,17). Pedro deve enunciar a palavra decisiva quando é preciso formular aquilo que a Igreja indefectivelmente assume na sua fé. Essa condição tem por objeto a fé que a Igreja quer conservar e expressar (mas não a fórmula considerada de modo meramente verbal). E Pedro, sendo aquele que respondeu à pergunta de Jesus, responde também pelo governo, embora não em seu próprio nome, mas como prefeito-mordomo da casa do Cristo.

O texto deixa claro que Simão se tornou chefe pela iniciativa de Cristo (imposição do novo nome). Liderar a Igreja não pode ser uma ambição pessoal. Na comunidade cristã não há lugar para tais ambições (cf. Mt 18,1-4; 20,24-28). Só porque o único Mestre e Senhor assim o quer, Pedro pode assumir essa responsabilidade; e, do mesmo modo, os seus sucessores. Por isso, desde o início da Igreja, sob invocação do Espírito Santo, o papa é escolhido – provavelmente a mais antiga tradição ininterrupta de governo por eleição que existe no mundo! O salmo responsorialsublinha, aliás, que Deus olha para os humildes ao distribuir os seus dons.

3. II leitura (Rm 11,33-36)

A segunda leiturade hoje é o hino pelo qual Paulo conclui a parte doutrinal da epístola aos Romanos, tendo versado durante onze capítulos sobre o mistério da salvação e da justificação gratuita pela graça de Deus e pela fé em Jesus Cristo. É o hino à insondável sabedoria de Deus, manifestada em Jesus Cristo. Nos capítulos 9-11 da carta aos Romanos, Paulo revela seu espanto diante do fato de que não Israel, mas as nações pagãs foram os primeiros a encontrar a salvação pela fé. Mas ele mostra também sua convicção de que Israel seguirá, afinal, o caminho das promessas das quais foi o destinatário primeiro. Considerando agora o plano de Deus num olhar global, o espanto de Paulo se transforma em admiração. Depois de ter meditado tanto, só lhe resta exclamar a imensurável profundidade deste mistério da graça. Deus não fica devendo a ninguém. “Quem primeiro deu-lhe o dom (a graça), para receber em troca?” (v. 35). Este hino cabe em qualquer circunstância de nossa vida.

III. PISTAS PARA REFLEXÃO: o “poder das chaves”

Costumamos dizer que o papa detém o “poder das chaves”. Mas que significa isso? A liturgia de hoje nos ajuda a compreender melhor esse tema. Pela primeira leitura, aprendemos que “o poder das chaves” significa a administração da casa ou da cidade. O administrador do palácio do rei, Sobna, será substituído por Eliacim, que receberá “as chaves da casa de Davi”. No evangelho, Pedro, em nome dos doze apóstolos, proclama Jesus Messias e Filho de Deus. Jesus, em compensação, proclama Pedro fundamento da Igreja e confia-lhe “as chaves do Reino dos Céus”. Dá-lhe também o poder de “ligar e desligar”, o que significa obrigar e deixar livre, ou seja, o poder de decisão na comunidade (em Mt 18,18, esse poder é dado à Igreja como tal).

“As chaves do Reino dos Céus” significam o ministério ou serviço pastoral; portanto, uma realidade no nível da fé. Nessa expressão, “Reino dos Céus” não é o céu como vida do além, mas o Reino de Deus (os judeus chamavam a Deus de “os Céus”). Trata-se do Reino de Deus entendido como comunidade, contraposta às “portas do inferno”, a cidade de satanás, que não prevalecerá sobre a comunidade cujas chaves Pedro recebe. Trata-se, pois, de duas cidades que se enfrentam aqui na terra. Pedro é o prefeito da cidade de Deus aqui na terra. Respondendo pelos Doze, administra as responsabilidades da fé e da evangelização. Na medida em que a Igreja realiza algo do Reino de Deus neste mundo, Jesus pode dizer que Pedro tem “as chaves do Reino dos Céus”, isto é, do domínio de Deus. Ele administra a comunidade de Deus no mundo. Quem exerce esse serviço hoje é o papa, bispo de Roma e sucessor de Pedro.

Mas já os antigos romanos diziam: o prefeito não deve se meter nas mínimas coisas. Pedro e seus sucessores não exercem sua responsabilidade sozinhos. A responsabilidade ordinária está com os bispos, como pastores das “igrejas particulares” (= dioceses). É o que se chama de colegialidade dos bispos. O bispo de Roma, irmão eleito entre seus pares, deve cuidar especificamente dos problemas que dizem respeito a todas as igrejas particulares. O papa é o “Servo da Unidade”.

Há quem não goste de que se fale em “poder” na Igreja, muito menos no poder papal. Mas quem já teve de coordenar algum serviço sabe que precisa de autoridade, pois senão nada acontece. No desprezo da “administração pastoral” da Igreja pode haver um quê de antiautoritarismo juvenil. Aliás, os jovens de hoje, pelo menos de modo confuso, já estão cansados do antiautoritarismo e percebem a falta de autoridade. Sem cair no autoritarismo de épocas anteriores, convém ter uma compreensão adequada da autoridade como serviço na Igreja. O evangelho nos ensina que essa autoridade está intimamente ligada à fé. Pedro é responsável pelo governo porque “respondeu pela fé” dos Doze.

Por outro lado, se é verdade que Pedro e seus sucessores têm a última palavra na responsabilidade pastoral, eles devem também escutar as “penúltimas” palavras de muita gente. Devemos chegar a uma obediência adultana Igreja: colaborar com os responsáveis num espírito de unidade, sabendo que se trata de uma causa comum, não nossa, mas de Deus. Nem mistificação da autoridade, nem anarquia.

Pe. Johan Konings, sj

Nascido na Bélgica, reside há muitos anos no Brasil, onde leciona desde 1972. É doutor em Teologia e mestre em Filosofia e em Filologia Bíblica pela Universidade Católica de Lovaina. Atualmente, é professor de Exegese Bíblica na Faje, em Belo Horizonte. Dedica-se principalmente aos seguintes assuntos: Bíblia – Antigo e Novo Testamento (tradução), Evangelhos (especialmente o de João) e hermenêutica bíblica. Entre outras obras, publicou: Descobrir a Bíblia a partir da liturgia; A Palavra se fez livro; Liturgia dominical: mistério de Cristo e formação dos fiéis – anos A-B-C; Ser cristão; Evangelho segundo João: amor e fidelidade; A Bíblia nas suas origens e hoje; Sinopse dos Evangelhos de Mateus, Marcos e Lucas e da “Fonte Q”.