Roteiros homiléticos

11 de janeiro – Batismo do Senhor

Por Johan Konings, sj

O “empoderamento” de Jesus para sua missão

Introdução geral

O sentido principal da festa do Batismo do Senhor, neste ano B, é a investidura de Jesus como Messias. O evangelho, próprio do ano B, descreve o batismo de Jesus no Jordão, quando o Espírito desce sobre ele na forma visível de pomba (Mc 1,7-11). Para as outras leituras e o salmo responsorial, o lecionário oferece como primeira opção os mesmos textos que nos anos A e C: a 1ª leitura de Is 42,1-4.6-7 (o profeta e servo impelido pelo Espírito), a 2ª leitura de At 10,34-38 (Pedro, proclamando Jesus como ungido por Deus com o Espírito Santo). É uma temática eminentemente cristológica.

Contudo, o lecionário prevê textos alternativos para as 1ª e 2ª leituras e o salmo responsorial. A 1ª leitura alternativa: o convite pronunciado pela boca do profeta Isaías para “vir às águas” (Is 55,1-11); o salmo responsorial, cujo refrão canta: “Com alegria bebereis do manancial da salvação” (Is 12,2-6); a 2ª leitura, o testemunho de Jesus dado pela água e pelo Espírito (1Jo 5,1-9). Esses textos são menos ilustrativos para o tema cristológico do evangelho, mas, acentuando o simbolismo da água, podem eventualmente servir para uma reflexão em torno do batismo cristão. Nosso comentário, porém, seguirá a linha cristológica dos textos oferecidos como primeira opção.

II Comentário dos textos bíblicos

1. I leitura (Is 42,1-4.6-7)

O primeiro cântico do Servo (Is 42) encaminha nossa mente para a compreensão do evangelho. Apresenta a misteriosa personagem, do tempo do exílio babilônico, à qual foram dedicados os quatro cânticos do Servo (Is 42,1-7; 49,1-6; 50,4-9; 52,13-53,12). O primeiro cântico, lido hoje, apresenta a eleição desse predileto para levar aos povos e aos continentes (“ilhas”) o verdadeiro conhecimento do Deus de misericórdia e fidelidade. Ele é a aliança com o povo, a luz das nações, para restaurar a paz e a felicidade dos oprimidos. Ele é o portador da quase trágica “eleição” do povo de Israel para, no desterro, ser testemunha do Deus verdadeiro no meio das nações.

2. II leitura (At 10,34-38)

A 2ª leitura é o início de outro texto-chave do Novo Testamento: o “querigma” ou anúncio proclamado por Pedro para os companheiros pagãos do centurião Cornélio, em At 10,34-43. Os vv. 37-43 são praticamente o resumo do Evangelho de Marcos (e de Lucas) e servem de modelo para o anúncio cristão. Com claro tom de universalidade, Pedro anuncia a missão de Jesus como Messias e Filho de Deus a partir de seu batismo por João. A liturgia de hoje apresenta a introdução desse texto (vv. 34-38): o início da obra de Jesus, a saber, seu batismo por João. Esse evento é de suma importância, pois significa a investidura de Jesus para sua missão messiânica. Jesus é o Messias, o “ungido” com o Espírito Santo. O termo “messias” significa ungido, mas Jesus nunca foi ungido, materialmente, como rei ou sacerdote. Foi ungido simbolicamente, como profeta. Essa unção com o Espírito do Senhor, derramado sobre o profeta, é mencionada em Is 61,1, texto que Lucas elaborou na cena da “pregação inaugural” de Jesus, Lc 4,16-30.

3. Evangelho (Mc 1,7-11)

O evangelho de hoje mostra o “empoderamento” de Jesus para sua atividade pública, a qual começa com a proclamação da chegada do Reino de Deus (Mc 1,14-15). O Evangelho de Marcos abre solenemente com o anúncio, feito por João Batista, da chegada do enviado escatológico. Em Marcos, diferentemente dos outros evangelhos, faltam as palavras do anúncio do juízo e da pregação penitencial do Batista (Mt 3,7-10; Lc 3,7-14). Marcos concentra totalmente a atenção naquele que há de vir. Cita a frase do Batista: “Depois de mim vem aquele que é mais forte do que eu. Eu nem sou digno de, abaixando-me, desatar a correia de suas sandálias” – tarefa do escravo ou do discípulo a serviço de seu “rabi”.

Quando Jesus participa com seu povo do despertar messiânico provocado pelo Batista, Deus lhe dá a investidura como Messias. Enquanto João Batista batiza com água, o “mais forte” chega para batizar com Espírito Santo. O batismo de João era um rito de conversão para o povo de Israel. João o administrava lá onde o povo pudesse se reunir, independentemente do Templo de Jerusalém. Escolheu para esse rito as águas do rio Jordão, que, muitos séculos antes, o povo tinha atravessado para entrar na terra prometida. Era como se agora renovassem essa experiência. Jesus, todo entregue ao projeto de Deus, seu Pai, não podia faltar a esse evento, movimento de preparação messiânica e expressão pura e livre da piedade de seu povo, o povo judeu. Mas a atividade de Jesus nos leva a outro nível.

João pertence a um degrau preparatório na história da salvação. Jesus vem depois dele, mas isso não é um “depois” como o do discípulo que segue o mestre. Significa o novo tempo que suplanta o anterior. É o tempo da efusão do Espírito anunciada pelos profetas (cf. Ez 36,26-27: espírito novo nos corações; Jl 3,1-2: efusão escatológica do Espírito). O suposto seguidor do Batista é, na realidade, aquele que batiza com o Espírito Santo. E como ninguém pode dar o que não recebeu, conta-se como Jesus recebeu, por ocasião do batismo, o Espírito de Deus.

É um momento escatológico, quase apocalíptico: Jesus vê o céu “rasgar-se”, como na invocação da vinda salvadora de Deus proclamada por Isaías (Is 63,19). A voz de Deus, representada pela visão da ave mensageira, proclama a investidura de Jesus como rei messiânico, com a fórmula que lembra a investidura dos reis: “Tu és meu filho” (cf. Sl 2,7). A fórmula é completada pelo termo “amado”, que exprime a eleição por Deus, e seguida da declaração: “em ti ponho meu benquerer” (lecionário), “em ti está meu agrado” (Bíblia da CNBB). Sobre Jesus, que recebe o Espírito de Deus, está o agrado ou o benquerer de Deus, isto é, sua vontade salvífica. Deus não está querendo dizer que o seu amado é “agradável”, e sim que ele executará o agrado de Deus, a saber, a obra da salvação. Pode-se parafrasear: “Coloco sobre teus ombros a obra que eu quero realizar”.

É de notar que, no Evangelho de Marcos, só Jesus vê o céu aberto e ouve a voz (os outros evangelistas apresentam a cena de modo mais público). Isso se deve, em parte, ao fato de a investidura ser dirigida ao novo rei individualmente (cf. Sl 2,7). Mas, em Marcos, há algo a mais. O conhecimento e a compreensão da missão messiânica de Jesus se dão progressivamente. A fórmula é retomada bem no meio do Evangelho de Marcos, na transfiguração de Jesus (Mc 9,7), depois da confissão de fé feita por Pedro (Mc 8,29) e da subsequente correção do conceito de Messias no primeiro anúncio da Paixão (Mc 8,31-33). Jesus toma consigo os três discípulos mais representativos, que no alto da montanha recebem uma visão de Jesus glorioso. A esses é revelado o que, na cena do batismo (segundo Marcos), foi proclamado só para Jesus: “Este é o meu Filho amado, escutai-o” (Mc 9,7). E, no fim do evangelho, quando Jesus cumpre a sua missão, dando sua vida, um soldado romano, representante do mundo inteiro ao qual se destina a salvação, exclama: “Este homem era verdadeiramente (o) Filho de Deus” (Mc 15,39). Só nesse momento fica claro de que modo Jesus assume o “agrado”, o plano salvífico de Deus, de acordo com sua exclamação na hora da agonia: “Não o que eu quero, mas o que tu queres” (Mc 14,38). Assim, Marcos estende por sobre todo o seu evangelho o que se costuma chamar o “segredo messiânico”, a revelação do Filho de Deus que se completa na cruz. O batismo engaja Jesus nessa missão.

III. Dicas para a reflexão

O Natal se prolonga nas festas da Epifania e do Batismo de Jesus, que têm em comum a ideia da manifestação de Deus ao mundo em Jesus de Nazaré. Deus se manifestou ao próprio Jesus para lhe confiar sua missão.

A 1ª leitura apresenta o “Servo de Deus” de que fala o profeta Isaías. “Servo” (= ministro, encarregado) é um título que pode ser aplicado ao rei, ao profeta ou até ao próprio povo da Aliança. Na sua disposição a executar o projeto de Deus, o “servo” prefigura Jesus. A 2ª leitura conta como, depois de Pentecostes, os apóstolos proclamam Jesus, chamando-o com o nome bíblico de “Ungido de Deus” – em hebraico, Messias: ungido com o Espírito Santo.

É isso que o evangelho descreve. Jesus tinha-se integrado no movimento de João Batista, que fez reviver a voz profética, silenciada durante séculos. Agora, no momento em que Jesus recebe das mãos de João o batismo no rio Jordão, Deus lhe dá “sinal verde” para sua própria missão: “Tu és o meu Filho amado, em ti ponho meu benquerer”. “Filho de Deus” era um título dado ao rei (Davi). Num sentido infinitamente mais rico, esse título cabe a Jesus. Deus o “empodera” como executor de seu benquerer, realizador de seu reinado. Desce sobre Jesus o Espírito de Deus: sua força, seu dinamismo, seu calor, sua sabedoria… O reinado que ele vai instaurar supera de longe o de Davi. É um projeto divino, para que Deus reine nos corações humanos e em todas as estruturas da comunidade humana e para que seus “aliados” realizem a justiça e o amor.

Jesus assumiu sua “nomeação” e deu a vida para cumpri-la: para desmascarar o cinismo e a hipocrisia dos chefes religiosos e políticos; para ensinar o plano de Deus ao povo entregue às mãos dos poderosos; para formar um grupo de discípulos que entendessem sua proposta – ao menos, depois de sua morte e ressurreição…

Jesus assumiu a realização da vontade do Pai. Anunciou a justiça e a misericórdia de Deus aos que mais as esperavam: os pobres, os excluídos. Pregou a libertação, o fim do mal que domina este mundo. Mas ele não quis ficar sozinho. Formou uma comunidade que continuasse sua missão. Essa comunidade se marca com o mesmo sinal que Jesus quis receber juntamente com seu povo em busca de renovação: o batismo. Os que sucedem Jesus no empenho pelo reinado de Deus trilharão o seu caminho assumindo tudo o que colabora para a justiça concebida por Deus, assim como Jesus assumiu o movimento lançado por João Batista. E, sobretudo, voltarão o ouvido e o coração à voz que vem do Pai, para que se realize o que diz a oração final desta liturgia: “Chamados filhos de Deus, o sejamos de fato”.

Johan Konings, sj

Nascido na Bélgica, reside há muitos anos no Brasil, onde leciona desde 1972. É doutor em Teologia e mestre em Filosofia e em Filologia Bíblica pela Universidade Católica de Lovaina. Atualmente é professor de Exegese Bíblica na Faje, em Belo Horizonte. Dedica-se principalmente aos seguintes assuntos: Bíblia – Antigo e Novo Testamento (tradução), evangelhos (especialmente o de João) e hermenêutica bíblica.Entre outras obras, publicou: Descobrir a Bíblia a partir da liturgia; A Palavra se fez livro; Liturgia dominical: mistério de Cristo e formação dos fiéis – anos A-B-C. E-mail: [email protected]