Roteiros homiléticos

06 de outubro – 27º DOMINGO DO TEMPO COMUM

Por Pe. Johan Konings, sj

A SOBERANIA DE DEUS E NOSSA FIDELIDADE

I. INTRODUÇÃO GERAL 
O mote da liturgia de hoje é: fé e fidelidade. O termo bíblico – emuná em hebraico, pistis em grego, fides em latim – tem esses dois sentidos. Ora, a base de nossa fidelidade está na firmeza inabalável e soberana de Deus. Se dizemos que nossa fé nos salva, isso não é por causa da nossa qualidade, mas porque nossa fé nos une a Deus, que nos salva. Fé é adesão firme a Deus, que é fiel. É a total entrega ao seu desígnio, que muitas vezes supera nossa compreensão imediata, mas, em última instância, nos confirma na salvação. No Antigo Testamento, por exemplo, na 1ª leitura de hoje, a fé é a adesão em autenticidade e lealdade a Deus; no Novo Testamento, trata-se da adesão a Jesus Cristo, que nos une a Deus.
 
II. COMENTÁRIO DOS TEXTOS BÍBLICOS 
1. II leitura (Hab 1,2-3; 2,2-4)
Habacuc 1,2-2,4 é um diálogo entre Deus e o profeta. Diante da desordem que reina em Judá, nos últimos anos antes do exílio, Habacuc grita a Deus com impaciência, quase com desespero. Deus, porém, anuncia que tratará o mal da infidelidade com um remédio mais tremendo ainda: os babilônios. Quando Habacuc reclama contra essa solução – na leitura deste domingo –, Deus responde: “Eu sei o que faço; não preciso prestar contas; mas os justos se salvarão por sua fidelidade” (2,2-4). O profeta se queixa, porque a impiedade está vencendo, porque o direito e o próprio justo são pisados ao pé. Deus, porém, não precisa prestar contas para o ser humano. Este é que lhe deve obediência, também nas horas difíceis: é a “fé/fidelidade” que faz viver o justo (2,4).
 
2. Evangelho (Lc 17,5-10)
O evangelho começa com a prece dos apóstolos: “Senhor, aumenta nossa fé”. Às vezes precisa-se de muita fé para acolher a palavra de Jesus, pois o evangelho não é tão evidentemente gratificante. Daí os discípulos dizerem: “Dá-nos mais fé”.
A resposta de Jesus é uma admoestação para que tenham fé que transporta montanhas! Jesus fala aqui no estilo hiperbólico, exagerado, dos orientais, mas não deixa de ser verdade que quem se entrega em confiança a Deus em Jesus Cristo faz coisas que outros não fazem e que o próprio crente não se julga capaz de fazer.
Somos como peões de fazenda, que, depois de terem executado seu longo e cansativo serviço, não podem reclamar, pois apenas cumpriram seu dever (cf. 1Cor 9,16). Assim como, em Habacuc, Deus não presta contas ao profeta, o “dono” na parábola do evangelho não precisa prestar contas a seus servos. Depois da longa jornada dos servos no campo, ele pede que lhe preparem a comida e a sirvam, sem reclamar. Fizeram somente seu dever. Claro que Jesus não está justificando esse modo de agir do dono; apenas usa uma cena cotidiana de seu tempo para expressar que Deus não precisa prestar contas: quando o servimos, fazemos apenas o que devemos fazer.
Nossa mentalidade atual não aceita isso facilmente. Em nossa sociedade, a mínima prestação de serviço exige uma gratificação específica. Ainda que, muitas vezes, a gratificação não valha o serviço, essa mentalidade exclui todo o espírito do “simples serviço”. Até as prefeituras e governos estaduais fazem propaganda com as obras que nada mais são que a execução de seu dever! Ora, no Reino de Deus, o que conta é o espírito de participação. Faz-se o que o Reino exige, sem cobrar nada extra. A recompensa existe no participar, como Paulo diz a respeito de anunciar o evangelho gratuitamente (1Cor 9,16). Ao interpretar a parábola de Jesus, devemos pôr entre parênteses os traços paternalistas da cena que ele evoca. O que ele quer mostrar é que participamos no projeto de Deus, não em função de uma compensação extra, mas porque é a obra de Deus. O próprio Deus é nossa recompensa, e a realização de seu amor supera qualquer recompensa extra que poderíamos imaginar.
 
3. II leitura (2Tm 1,6-8.13-14)
A 2ª leitura é tomada do início da Segunda Carta a Timóteo. Esta carta impressiona-nos por seu estilo vivo – uma fotografia em alta definição do Apóstolo no fim de seus dias. É seu testamento espiritual. No trecho de hoje, Paulo exorta seu amigo Timóteo a manter a plena fidelidade ao Senhor. Pois também o ministro da fé deve firmar-se na fidelidade, para poder confirmar os seus irmãos na fé.
Em Romanos 1,16, Paulo escreveu que não se envergonhava por causa do Evangelho. A Segunda Carta a Timóteo repete a mesma afirmação, para exortar os pastores que o sucedem, a fim de que se lembrem de estarem servindo ao Cristo aniquilado. Nas cidades do “mundo civilizado” de então, o cristianismo era ridicularizado e perseguido. Por isso, Paulo exorta seu discípulo a não se envergonhar e a guardar a doutrina sadia que dele recebeu (contra as fantasias gnósticas e outras que se introduziram no cristianismo primitivo). Exorta-o a guardar o “bom depósito”, ou seja, o bem nele depositado, a ele confiado (1,14). Esse “bom depósito” é a plena verdade do Evangelho. Repleto dela, o discípulo poderá distribuí-la aos outros, pois o cristão é responsável não só por sua própria fé, mas também pela fé e fidelidade do seu irmão. Ora, nas circunstâncias daquele tempo e de todos os tempos, isso só é possível com a força do Espírito Santo.
Recebemos hoje, portanto, uma mensagem para valorizar a fé, inclusive, como base da oração. Mas nossa fé não é uma espécie de fundo de garantia para que Deus nos atenda. Assim como ele não precisa prestar contas, também não é forçado por nossa fé. Nossa fé é necessária para nós mesmos, para ficarmos firmes na adesão a Deus em Jesus Cristo. Deus mesmo, porém, é soberano, e soberanamente nos dá mais do que ousamos pedir, como diz a oração deste domingo.
 
III. PISTAS PARA REFLEXÃO 
Somos simples servos: quem não gosta de um elogio? Não estão nossas igrejas tradicionais cheias de inscrições elogiando os generosos doadores dos bancos e dos vitrais? Ora, o evangelho de hoje nos propõe uma atitude que parece inaceitável a uma pessoa esclarecida: o empregado não deve reclamar quando, depois de todo o serviço no campo, em vez de ganhar elogio, ele ainda deve servir a janta. Ele é um empregado sem importância especial; tem de fazer seu serviço, sem discutir...
 
Essa parábola não é para ensinar a forma de tratar os empregados, Jesus nos quer ensinar a estar a serviço do Reino, sem atribuirmos importância a nós mesmos. Ele mesmo dará o exemplo disso, apresentando-se, na Última Ceia, como aquele que serve (Lc 22,27). Isto não rima com a mentalidade calculista e materialista da nossa sociedade, que procura compensação para tudo o que se faz – aliás, compensação superior ao valor daquilo que se fez...
Ora, se levamos a sério a parábola de Jesus, como ensinamos os empregados e os operários a reivindicar sempre mais (porque, se não reivindicam, são explorados)? Certamente, Jesus não quer condenar os movimentos de reivindicação, mas seu foco é outro. Ele quer apontar a dedicação integral no servir. Interesse próprio, lucro, reconhecimento, fama, poder... não são do nível do Reino, mas apenas da sobrevivência na sociedade que está aí. A parábola não quer desvalorizar as reivindicações da justiça social, mas insistir na gratuidade do serviço do Reino.
Diante disso, convém fazer um sério exame de consciência acerca da retidão e da gratuidade de nossas intenções conscientes e de nossas motivações inconscientes. Na Igreja, tradicional ou progressista, quanta ambição de poder, quanto querer aparecer, quantas compensaçõezinhas!
E mesmo com relação às estruturas da sociedade, a parábola de Jesus, hoje, nos ensina a não focalizarmos única e exclusivamente as reivindicações. Estas são importantes, no seu devido tempo e lugar, para garantir a justiça e conseguir as transformações necessárias. Mais fundamental, porém, na perspectiva de Deus, é criar o espírito de serviço e disponibilidade, que nunca poderá ser pago. Quem vive no espírito de comunhão nunca achará que está fazendo demais para os outros.
“Somos simples servos”. Antigamente se traduzia: “Somos servos inúteis”. Tal tradução era psicológica e sociologicamente nefasta, pois fomentava a acomodação; e também contraditória, pois servo inútil não serve... Servindo com simplicidade, não em função de compensações egoístas, mas em função da fidelidade e da objetividade, somos muito úteis para o projeto de Deus.

Pe. Johan Konings, sj

Nascido na Bélgica, reside há muitos anos no Brasil, onde leciona desde 1972. É doutor em Teologia e licenciado em Filosofia e em Filologia Bíblica pela Universidade Católica de Leuven (Lovaina). Atualmente, é professor de Exegese Bíblica na Faje, em Belo Horizonte. Entre outras obras, publicou: Descobrir a Bíblia a partir da liturgia; A Palavra se fez livro; Liturgia dominical: mistério de Cristo e formação dos fiéis – anos A - B - C; Ser cristão; Evangelho segundo João: amor e fidelidade; A Bíblia nas suas origens e hoje. E-mail: [email protected].