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Publicado em número 204 - (pp. 11-17)

A fraternidade e os desempregados

Por Pe. João Batista Libânio

O desemprego é um fato mundial altamente preocupante. Não é aqui o lugar de exibir os dados estatísticos que, com variantes, aparecem continuamente na imprensa. O tipo de pesquisa e a sua confiabilidade podem variar. Mas parece absolutamente evidente a verdade do dado do desemprego, desde os maiores índices na Espanha até aqueles menores nos Estados Unidos. Mesmo no caso dos Estados Unidos, que exibem baixas taxas a ponto de se poder falar de “pleno emprego”, sabe-se que isso se obteve à custa da deterioração dos salários e das condições de trabalho. Tudo mostra, portanto, que estamos em tempos novos.

A tão propalada globalização econômica tem mostrado que as taxas de crescimento, quando existem, são bem menores que as das décadas de ouro do neocapitalismo, a saber, do pós-guerra até os anos 70.

 

1. Mudança da natureza do desemprego

A natureza do desemprego mudou. Até então ele se produzia conjunturalmente em momentos de recessão industrial. E logo que o crescimento era retomado, o desemprego baixava — ou também correspondia a certas situações sazonais. Uma vez superadas, tudo voltava ao normal. Além disso, havia maior estabilidade nos vínculos empregatícios. Com isso, os trabalhadores gozavam de maior segurança a respeito de seu futuro.

Com o crescimento sustentado em períodos mais longos, com maior soma de contribuintes, os Estados capitalistas, sobretudo europeus, criaram fortes e sólidos sistemas de segurança social. Surgiu, assim, o Estado do bem-estar social.

A partir dos governos de M. Thatcher e R. Reagan, respectivamente do Reino Unido e dos Estados Unidos, inicia-se nova fase do capitalismo. Assistimos a vários fenômenos simultâneos que têm provocado enorme preocupação especialmente para o assalariado tradicional. Temos, de um lado, certo desenvolvimento — ainda que discreto —, e, de outro, perdas massivas de postos de emprego. Algo até então inédito na vida econômica. A rotatividade no emprego cresce. As formas de emprego são extremamente variadas, sendo que aquelas que davam maior garantia social tendem a diminuir. O emprego de carteira assinada cede lugar aos autônomos, aos trabalhos familiares terceirizados e a outras novas modalidades.

 

2. Tentativa de explicação do fenômeno

As explicações de fenômenos complexos assemelham-se a uma pesquisa geológica. Num primeiro nível, o solo mostra certa configuração e, à medida que se vai aprofundando a análise, vão descobrindo-se sempre novas e diferentes camadas de terreno. Atribuir a uma delas toda a riqueza ou pobreza do solo seria simplificar demasiadamente a complexidade da natureza.

Assim vamos procurar encontrar diferentes níveis de explicação de nossa situação de desemprego, desde as mais visíveis e imediatas até as mais profundas, a fim de entender essa situação no espírito da Campanha da Fraternidade.

 

3. A atual fase do capitalismo

Evidentemente o desemprego tem que ver com a atual fase neoliberal do capitalismo. É a camada mais superficial, visível, constatável. As taxas de desemprego na fase anterior do neocapitalismo keynesiano estiveram baixas. Viveu-se durante décadas o pleno emprego em muitos países. Nos anos dourados do assim chamado milagre econômico brasileiro havia postos de trabalho numa economia em expansão numa taxa de 10% ao ano. As novas gerações cresciam com garantias maiores de emprego.

O capital sempre teve a vocação de conquistar mercados. Mas detinha-se diante de defesas estabelecidas pelos Estados nacionais. Desse modo, a transnacionalização do capital se fazia em ritmo mais controlado.

O neoliberalismo coloca no centro o mercado e propugna a redução dos Estados nacionais. Dessa maneira, o capital encontra cada vez menos barreiras para transitar de bolsa em bolsa de valores, numa velocidade só comparável com a voracidade de lucro dos detentores e manipuladores de grandes fluxos econômicos.

Predomina altamente o capital financeiro especulativo sobre os investimentos produtivos. Com isso, as economias ficam mais vulneráveis a crises súbitas e, de certo modo, imprevisíveis. Os países emergentes têm poucas possibilidades de manobra. E os que têm as fazem à custa do próprio crescimento, acarretando, por esse lado, desemprego.

Seria complicado — e fora de nosso propósito — descrever a máquina financeira atual que gera, lá na ponta, o desemprego. Está aí o fato de que essa forma de capitalismo predominantemente especulativo-financeiro é causador de desemprego, sobretudo nos mercados emergentes. A cada dia, os jornais noticiam o crescimento da taxa dos desempregados. É uma evidência que salta aos olhos de quem vê os números, e que toca a pele de quem se vê no “olho da rua” sem trabalho, mas com o dever de sustentar uma família.

Além disso, a perda da autonomia dos Estados nacionais, que quase já não podem defender os interesses da nação, e assim entregam sua indústria à concorrência desleal diante de economias mais poderosas, dificulta encontrar soluções em vista dos interesses da própria nação. A consequência é uma quebradeira geral — mais barulhenta que uma banda “heavy metal”. Resultado: mais desemprego ainda.

Os Estados emergentes estão afogados em dívidas internas e externas que crescem ainda mais rapidamente, apesar de estarem continuamente saldando os pesados serviços dessas dívidas. Com efeito, só se consegue garantir a estabilidade da própria moeda à custa de juros altos. Estes aumentam astronomicamente a dívida do Estado. Dessa maneira, falido e quebrado, ele não só não pode criar novos empregos, como corta os que existem.

Ainda temos uma taxa de crescimento demográfico alta que joga cada ano milhões de brasileiros num mercado sem posto de trabalho, aumentando ainda mais os desempregados. É terrível, mas o círculo parece infernal. É mais um beco sem saída ou um labirinto de Dédalo.

O desemprego defronta-se com uma causa ainda mais profunda e de alcance mais longo. É o tipo de desenvolvimento tecnológico que se impõe no Ocidente, mas que se alastra por todos os outros continentes e culturas, gerando uma crise de proporções imprevisíveis. Tal fato merece uma análise mais detalhada.

 

4. Tipo de desenvolvimento tecnológico

A primeira revolução industrial produziu deslocamento de imensas massas de camponeses para as cidades. À medida que a agricultura se mecanizava, a geração jovem de famílias de muitos filhos devia ir buscar nas cidades emprego para sobreviver. E, além disso, a concentração agrária — e, no caso do Brasil, a falta total de uma reforma agrária consistente e inteligente — fez agravar mais o êxodo rural. Sabemos de sobra as consequências disso: urbanização desenfreada e desregrada com inchaço das periferias das cidades, péssima qualidade de vida das megalópoles, uma enorme massa de mão de obra disponível permitindo às empresas pagar salários baixos.

Não se pode esquecer que no Nordeste sofremos periódicas secas que agravaram e continuam agravando a migração de nordestinos para o Sul. De novo, a falta de uma política séria e honesta para o problema da seca vem protelando esse flagelo até nossos dias. Todos sabem e comentam a respeito da “indústria política da seca”, que está na base eleitoral de muitos políticos tradicionais. Essas ondas migratórias de nordestinos aumentaram ainda mais a mão de obra ociosa.

É verdade que, nos anos de maior expansão industrial, sobretudo no ABCD paulista com a implantação de grandes fábricas, houve abertura de muitos postos de trabalho. Era um imponente exército de trabalhadores. É por isso que explode agora com maior gravidade a crise do emprego, no momento em que entramos na segunda revolução industrial.

O desenvolvimento tecnológico entra em nova fase. A microeletrônica, o progresso das técnicas de informação e comunicação com o uso de computadores, modifica grandemente a maneira de produzir, de gerenciar, de comercializar, substituindo drasticamente o número de trabalhadores por máquinas e aparelhos cada vez mais sofisticados. E as empresas, que não entrarem nesse jogo de corte de custos à base da diminuição da mão de obra em proveito dos inventos sempre mais modernos, não conseguem suportar a concorrência. Com efeito, esta se globalizou obrigando os Estados nacionais a abrirem suas fronteiras, a flexibilizarem suas normas restritivas à importação, convertendo o mundo num único gigantesco mercado. Em arena única, todas as forças se digladiam. As mais fortes vencem. Em termos de mercado, isso significa que produtos mais baratos liquidam com os fabricados em nosso país. Daí decorre enorme quantidade de falências.

Por que se consegue produzir mais barato e, assim, vencer a luta comercial? A batalha se trava em duas frentes: diminuir a folha de pagamento em pessoal e usar tecnologia avançada com a única finalidade de baixar os custos. O desemprego resulta desses dois lados: menos gente trabalhando e mais máquinas em seu lugar.

E acrescente-se que as pessoas procuradas pelas novas empresas devem ser mais qualificadas, competentes, polivalentes, capazes de mudar continuamente de atribuições conforme as inovações vão modificando a configuração da empresa. Portanto, requer-se sempre menos gente e mais preparada. Jogam-se, assim, na rua os milhões e milhões de brasileiros de baixa escolaridade e capacidade humana pouco desenvolvida.

Além do mais, devido às leis trabalhistas, o custo social dos trabalhadores é muito maior em longo prazo. Por isso, entende-se a guerra que se travou e ainda se trava para modificar a legislação referente à seguridade social, aos tipos de contrato de trabalho etc. Tudo em nome da concorrência, onde a alta tecnologia decide quem será vitorioso. Tais mudanças, quando não desempregam, degradam a condição do trabalhador.

Nada segura esse frenesi tecnológico, independente da qualidade humana positiva ou negativa que ele proporciona. Está em jogo aumentar a competitividade da empresa para vencer no mercado. Toda tecnologia nesse sentido é bem-vinda, em que pese o custo social e humano. Em outras palavras, o progresso tecnológico se faz à revelia de qualquer ética.

Esse problema já escapa de longe ao controle de um Estado de modo particular. Se um Estado, por razões éticas e humanistas, restringisse o uso de máquinas, de robôs etc., ou taxasse sobremaneira tais engenhocas, o produto desse país perderia a concorrência em relação a um outro que não tem os mesmos escrúpulos éticos. No mundo econômico funciona o mais violento maquiavelismo. Senão, vejamos.

Quando Maquiavel analisa a maneira como um príncipe consegue manter o poder em seu território, constata que isso se faz pela sua presença vigilante. Mas se algum território escapa a essa presença, o risco das rebeliões torna-se grande. Então — aí vem a pérola de conselho! — aniquile-se esse povo que está longe de sua presença![1] Em termos econômicos: sejam aniquiladas as empresas que não conseguiram desempregar tanto, que mantiveram salários mais humanos etc., porque só um produto mais barato vence no comércio. O conselho político de Maquiavel é, desse modo, transferido para a economia.

Considerando esse jogo de alto poder econômico e político, nós, cidadãos comuns, nos sentimos impotentes. Como podemos enfrentar essa máquina devastadora? Há possibilidades, sim, de atuarmos. Senão, vejamos. Ao levantarmos uma pergunta ulterior, poderemos, ao respondê-la, ir encontrando um campo para nossa presença ativa. O processo tecnológico, enquanto tal, escapa de qualquer controle, se não fizermos uma pergunta ainda mais profunda. Que visão de ser humano está por detrás desse circuito incontrolável do desenvolvimento tecnológico? Será que com uma outra visão humana poderíamos encarreirar o progresso noutra direção e assim obviar muitos de seus malefícios?

 

5. Visão antropológica do desenvolvimento ocidental

Esse desenvolvimento tecnológico não é um departamento isolado da cultura ocidental. Insere-se numa compreensão de desenvolvimento, da pessoa humana que o alimenta. A palavra “desenvolvimento” significa, em nosso caso, a mesma coisa que progresso. Qual é a compreensão que o Ocidente tem de progresso?

A longa narrativa, que caracteriza nossa cultura, é a do progresso linear e da acumulação. Esse é o traço mais que cultural, diria civilizacional do Ocidente. Civilização é, em última análise, aquele conjunto de elementos pelos quais nós de diferentes culturas no Ocidente nos identificamos[2]. São traços mais profundos que marcam as culturas. Por conseguinte, a concepção linear da história, da cultura, da vida humana marca nossa civilização. A linha prolonga-se indefinidamente. Assim o progresso é percebido de modo ilimitado. E, à medida que avança, vai acumulando. Qual é o objeto direto do verbo mágico da nossa civilização? Acumular o quê? Diria, sem mais, tudo.

Se estamos encantados com o saber, acumulamo-lo em livros, em enciclopédias e, agora, com os recursos da informática, a acumulação de conhecimentos parece realmente ilimitada. Se não fossem os incêndios e outros acidentes, as nossas bibliotecas seriam ainda maiores. Acumulamos os livros. Se olhamos para dentro de nossa casa, de nosso quarto: quanta coisa acumulada! Mas o que encarna ainda mais claramente o gesto de acumulação são os bancos. Acumulam os capitais. E hoje, nesta fase louca do capitalismo, às vezes nem sabemos para que se acumulam os capitais, já que a imensa parte dele é puramente especulativa, sem nenhuma finalidade produtiva. Por isso, o sistema se chama “capitalismo”, acúmulo de capital.

Com essa compreensão da vida, do progresso, do desenvolvimento, é de estranhar que procuremos criar uma sociedade em que se acumulem cada vez mais bens materiais? As lojas e vendas antigas são soberbamente substituídas pelos shopping centers, onde se acumula uma rede de lojas com gigantesca quantidade de bens materiais. Por isso dizem que o shopping é a catedral da sociedade moderna onde as pessoas se aglomeram para cultuar os seus Baais, expostos nas vitrinas.

Mas que tem que ver isso com o desemprego? Parece que estamos longe do assunto. Só aparentemente. O progresso, como um processo linear interminável na linha da acumulação, só se explica e se mantém se por detrás alimentarmos uma compreensão das pessoas como feixes de desejos infinitos de bens materiais. Hegel já dizia que o desejo é o mal infinito. E se o desejo é de sempre novos bens materiais, cada vez mais atraentes, independentemente se são necessários ou não, se eles tornam a pessoa mais humana ou não, temos então um progresso que se descola do sujeito para o qual ele deveria existir. Inverte-se o movimento. O ser humano é feito para os bens materiais, e não estes para o ser humano. Portanto, quando estiver em jogo a produção de bens ou o emprego de pessoas, o primeiro fator vence. Logo, desemprego.

Entra no jogo outro ingrediente. O que se torna desejável? Aquilo que, de certo modo, é disputado por muitos e só acessível a poucos[3]. Por isso, à medida que um bem material se socializa, ele precisa ser substituído por outro mais sofisticado, para manter aceso o desejo. E, para isso, haja tecnologia e investimento! E como conseguir tais investimentos? Aumentando os lucros e diminuindo os gastos, cortando a folha de pagamento, gerando mais desemprego. É um círculo infernal. A tecnologia exige e produz mais capital. Exige capital, como investimento. Produz capital, pela maior rentabilidade da produção. Nos dois momentos, ela gera desemprego. Nova tecnologia precisa de menos gente, logo desemprega. Para ter mais dinheiro para investir, precisa-se cortar gastos, e o mais fácil é reduzir a mão de obra. De novo, desemprego. Na beleza de muitos bens de consumo, sedutores, está a amargura dolorosa de muitos desempregados. Quem diria?

Se olharmos esse jogo do progresso tecnológico no conjunto dos países, percebemos que a sua concretização sempre avançada se dá nos países ricos. Eles vão produzindo bens cada vez mais sofisticados para suas camadas abastadas, excluindo necessariamente as imensas massas dos países pobres. E quando algum desses bens atinge mais pessoas, ai já surgiram outros ainda mais avançados. Quanto mais se avança nesse círculo, tanto mais se requer alta tecnologia e menos gente. Portanto mais desemprego.

Indo mais fundo no problema, está em jogo a questão básica da realização humana, da natureza do ser humano. Somos um ser moral ou um ser de desejos transformados em necessidades? O capitalismo aposta na segunda definição do ser humano. Por isso, os países onde ele mais se desenvolveu e as camadas que mais o abraçam real ou simbolicamente são os mais materialistas. Nas culturas mais espiritualistas há maior resistência a essa marcha triunfal do progresso material.

Ultimamente um outro fator tem sido altamente importante para reforçar essa visão de ser humano, a saber, a mídia. Ela alimenta, com a avalancha de propaganda, o imaginário de todos. As imagens coloridas da mídia reforçam os desejos, convertem-nos em necessidades, açulam a voracidade consumista. Por isso, quando dizíamos que os países ricos e as camadas abastadas são as que mais estimulam esse processo, devemos introduzir um corretivo. Hoje as classes marginalizadas estão sendo, também elas, submetidas ao mesmo bombardeio ideológico. E a impossibilidade de poder concretamente realizar tais desejos, transformados em necessidade, não é condição suficiente para que a cabeça deixe de viver esse tipo de mundo. Mais: tal fato pode estar, sem dúvida, atrás da crescente onda de violência no mundo jovem. Já que eles não podem obter os bens por bem, obtêm-nos por mal.

O Ocidente conseguiu essa performance de construir um ser humano tão materialista, tão confuso no que concerne a seus desejos e necessidades, a ponto de sentir-se diminuído enquanto não forem realizados indefinidamente seus sonhos dourados de consumo. Tal empreendimento cultural não está desvinculado do fato da redução de nossa condição de pessoa a indivíduo. O individualismo é não só a ideologia da modernidade[4], mas a ideologia maior do Ocidente. Se somos indivíduos, estamos mais voltados para a nossa singularidade, nossa originalidade, nossa identidade do que para a comunicação, a partilha, a comunhão com os outros. A mídia propagandística batalha precisamente essa nossa dimensão de indivíduo para que possamos consumir cada vez mais bens materiais. Uma vida convivial necessitaria de menos bens materiais. É sabido que as pessoas suprem suas carências afetivas, as dificuldades de relacionamento, por uma compulsão consumista, seja para si, seja para entupir os entes queridos com bens materiais. Não revelou uma pesquisa que os pais mais ausentes afetivamente, em igualdade de condições, são os que mais presenteiam com bens materiais a seus filhos?

Estamos longe do início de nossa reflexão. O desemprego nos levou a perceber que está em jogo uma compreensão de ser humano. E que, portanto, sem minimizar as necessárias medidas emergenciais e sem delongas no campo econômico para abrir postos de trabalho, o problema se joga num plano mais profundo, cultural, civilizacional. Uma solução a longo alcance virá da mudança da concepção de desenvolvimento unida, evidentemente, a novo paradigma antropológico. É aí que vejo as possibilidades de nosso trabalho cristão educativo.

 

6. Resposta cristã a tal situação

Evidentemente toda iniciativa, em qualquer nível, que favoreça a criação de empregos é bem-vinda. Ilustramos com um exemplo: há algum tempo, a pastoral social da Arquidiocese de Belo Horizonte promoveu um encontro sobre economia comunitária popular[5]. Não se tratava de uma questão teórica, mas simplesmente de reunir pessoas que desenvolviam experiências comunitárias no campo da economia popular, a fim de despertar mais criatividade. Essas pequenas iniciativas não são nenhuma resposta estrutural nem de longo alcance, mas emergencial.

Com a perda crescente de postos de trabalho, a economia informal tem crescido de modo gigantesco. Ela supõe maior capacidade imaginativa das pessoas. Naturalmente nem todas as pessoas têm tais possibilidades. É, talvez, o momento de associarem-se em pequenos empreendimentos dois tipos de pessoas: as inventivas e as que “carregam o piano”. Há muito espaço na sociedade para tais iniciativas — mesmo com poucos recursos.

Diante do gigantesco desemprego, da deterioração da vida urbana, das condições subumanas das massas populares, perguntava um cientista político: “Por que as megalópoles não explodem?”[6]. A resposta abordava vários aspectos, desde a repressão policial até os lenitivos religiosos das Igrejas neopentecostais. Entre outros fatores que amenizam a crise urbana está a possibilidade de criar muitos empregos à margem da economia formal. Aí estão as “fabriquetas” de fundo de quintal, que, sem tecnologia, conseguem disputar um mercado com outras empresas qualificadas pela simples razão de poderem colocar seu produto bem próximo de onde se fabrica sem intermediários e impostos.

Sem desconhecer tais realizações e possibilidades, a Campanha da Fraternidade deveria levar-nos a reflexões de maior fôlego. E essas acontecem no campo cultural. Não há transformação econômica consistente, sem uma mudança cultural. E aí temos possibilidades maiores pela educação formal e informal, pelo uso de nossos recursos de comunicação, de nossa presença simbólica na sociedade.

Um primeiro ponto fundamental é a construção de uma sadia consciência nacional[7]. A nossa longa história de dependência, o mimetismo infantil de nossas elites, tem impossibilitado a tomada de consciência de valores nossos. Há um latente complexo de inferioridade que nos leva a julgar que as coisas feitas no estrangeiro são sempre melhores. Tal consciência tem um duplo efeito nefasto com alcance na nossa vida econômica. Tanto os produtores não esmeram no produto — e muitos preferem o caminho da falsificação, do engano em vez da seriedade — quanto os consumidores prestigiam mais os bens importados.

Vimos outro dia no jornal televisivo um empresário brasileiro defendendo os produtos brasileiros — linguagem verbal — e, de repente, a jornalista, maliciosa, tomou-lhe a gravata e leu “made in Italy”— linguagem não verbal. Com esse gesto, todo o discurso dele foi invalidado. Aparece mais uma fala para enganar do que para convencer de uma verdade.

A imagem irá modificando-se pelo duplo movimento de seriedade de nossos empresários e de consciência dos consumidores de confiança em nossos produtos. Além do mais, para certos bens a pequena diferença na qualidade da produção é muito mais simbólica do que real. Uma qualidade ligeiramente inferior cobriria perfeitamente nossas necessidades e poderia manter indústrias em funcionamento, em vez de levá-las à falência por causa da preferência de produtos importados. E a escolha destes não raramente se faz por causa da terrível doença das “grifes”. Há um enorme campo na educação das crianças e jovens, mais sujeitos às propagandas, em relação à desmitificação da “grife” como valorização do objeto e da pessoa que a ostenta.

Uma consciência nacional sadia permite que percebamos que o processo de desenvolvimento do Brasil se fará à medida que nosso mercado interno crescer. E ele tem mais necessidade de bens menos sofisticados e mais socializáveis, de modo que não se precisa recorrer ao “último grito tecnológico”. Entretanto, tal produto não terá venda se não se criar uma mentalidade realista em relação às nossas possibilidades atuais. Um exemplo pode ilustrar esse ponto. Tomemos o caso do tênis. Vamos imaginar que o Brasil tenha condição de produzir uma quantidade de tênis para as grandes massas populares. Mas não podem ser “Nike” por causa de todas as implicações de patentes, custos etc. Mesmo que o tênis fosse um pouco inferior, é muito mais inteligente que todos possam usá-lo do que limitar-se a poucos usando um tênis caro. No entanto, caso uma fábrica brasileira produzisse esse tênis, correria o risco de ir à falência por não conseguir vendê-lo. Com efeito, a grife “Nike” bloqueia os desejos, sobretudo dos jovens, de modo que não quererão usar outra marca de tênis, mesmo se essa estivesse a seu alcance e cumprisse perfeitamente a finalidade. Isso é uma questão cultural simbólica, e não objetiva material. Que força do mundo consegue levar um jovem a usar um tênis sem “grife”? Só uma mudança cultural mais profunda, uma outra compreensão do sentido material das coisas.

Uma nação se levanta quando seus habitantes confiam nela. Para essa confiança ser uma realidade concreta, é importante a consciência de igualdade fundamental entre as pessoas. Ora, o neoliberalismo tem tido uma força destruidora em relação a tal consciência, pela simples razão de que é excludente. Ele exclui da realidade atual mais totalizante que é o mercado. Além do mais, ele vem sobrepor-se a uma cultura ancestral em nosso país de que existem dois tipos de brasileiros: os superiores e os inferiores. Um fato horrendo — que visibilizou tal consciência —, foi o assassínio do índio Galdino por alguns jovens ricos de Brasília. Eles eram os superiores que podiam fazer a horrorosa brincadeira de queimar um mendigo, ele sim, inferior. Essa é nossa experiência diária em todos os setores. Nós mesmos, ora somos situados entre os superiores, ora entre os inferiores, conforme o caso. Nunca, porém, em nível de igualdade fundamental, de respeito à pessoa por ser pessoa, independente de título, raça, sexo, escolaridade, religião etc. Só uma sociedade em que nos sentimos todos iguais coloca-se com seriedade a questão do emprego. Emprego é direito de todos, e não simplesmente dos “polivalentes”, dos mais competentes, dos mais letrados, dos privilegiados.

Outro ponto fundamental na criação de uma consciência nacional e que repercute no emprego é o respeito pela “coisa pública”. Numa pesquisa entre jovens numa escola, perguntou-se: o que é bem público? A resposta revelou a mentalidade geral: “É coisa de ninguém”. Por isso, privatizemo-la para que seja de alguém. É o slogan da moda neoliberal! E temos visto que a privatização tem sido outra fonte de desemprego, já que certos aspectos sociais, que o Estado considera, a empresa privada desconhece.

Além do mais, há uma terrível tradição política patrimonialista que corrói o Brasil por dentro. A “coisa pública” é de quem se apropria. E os ricos e poderosos têm por onde fazê-lo, seja pela força, seja pela proteção dos cartolas, seja pelo beija-mão dos soberanos. Não nascemos à luz da capitania hereditária? De onde vieram tantos latifúndios, senão da apropriação de terras por parte de aventureiros ou de apadrinhados? Por sua vez, o que o MST quer fazer é considerado crime — mesmo que a pretensão deste movimento não vise a atender apenas a um proprietário, mas socializar tal bem! Quanta hipocrisia em toda essa questão da terra!

Mas o que isso tem que ver com o desemprego? Só a consciência de que o Brasil é de todos, e não de alguns “proprietários”, pode gerar uma consciência de que, juntos, podemos construí-lo. Esse “juntos” implica envolver as pessoas nessa tarefa de construção. E isso se faz pelo trabalho, pelo emprego. Enquanto a maioria dos brasileiros olhar para seu país como uma terra de exploração, como não evitar a violenta concorrência e exclusão? Muitos, desejando o mesmo bem, geram apropriação de um lado, e segregação de outro.

 

7. Conclusão

A Campanha da Fraternidade abre-nos um continente de possibilidades no campo das mudanças culturais. Todos somos convidados a trabalhar na criação de novo imaginário social que deixe de ser elitista, excludente, mimético de outros países. Isso implica realmente pensar até mesmo em novo paradigma de sociedade. Em vez de pôr toda a força na produção quantitativa, no consumismo desvairado, na acumulação astronômica de capital, numa razão instrumental, desloquemos a atenção para a qualidade de vida, a simplicidade e sobriedade do uso das coisas materiais, para uma razão comunicativa e inclusiva.

Além disso, batalhar na direção da compreensão da existência humana como rede de comunicação, como interrelação, e não a partir do doentio individualismo ocidental. Enfim, o emprego só se resolve em termos de humanidade em outro modelo de desenvolvimento tecnológico, de compreensão de progresso, de visão antropológica. E se voltarmos para a mais genuína tradição evangélica, encontramos nela a inspiração para tal tarefa. O que é o espírito das bem-aventuranças senão uma vida de simplicidade como “as aves do céu, que não semeiam nem ceifam” (Mt 6,26) ou como “os lírios do campo, que não trabalham nem fiam” (Mt 6, 28), mas todos são sustentados pelo Pai celeste? Em termos modernos, diríamos que o futuro da humanidade virá de um modelo “ecossocial” em que se respeite a vida do planeta por uma relação nova com todo o cosmo e em que se partilhem os bens de modo fraterno[8]. E um dos bens fundamentais é o trabalho. Sem trabalho, sem emprego, não há vida humana. O trabalho, porém, necessita ser de tal qualidade que não destrua a nossa casa comum, a Terra.



[1] N. Maquiavel, O Príncipe, trad. S. Bath, Brasília, Universidade de Brasília, 1979, p. 54.

[2] Bas de Gaay Fortman — Berma Klein Goldewijk, God and the Goods. Global Economy in a Civilizational Perspective, Genebra, WCC Publications, s/d, pp. 12-15.

[3] Mo Sung, Jung, Desejo, mercado e religião, Petrópolis, Vozes, 1998, pp. 46-72.

[4] L. Dumont, O individualismo. Uma perspectiva antropológica da ideologia moderna, Rio de Janeiro, Rocco, 1985, p. 21.

[5] Projeto Pastoral Construir a Esperança, ASA, Economia popular solidária, BH, mimeo, s/d.

[6] Milton Santos, “A metrópole: modernização, involução e segmentação”, in: L. Valladares, E. Preteceille, Reestruturação urbana. Tendências e desafios, São Paulo, Nobel/lUPERJ, 1990, pp. 183-191.

[7] B. César et al, A opção brasileira, Rio de Janeiro, Contraponto, 1998, pp. 147ss.

[8] L. Boff, Nova Era: A civilização planetária, São Paulo, Ática, 1994.

Pe. João Batista Libânio