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Publicado em número 224 - (pp. 3-9)

A fé em meio às lógicas da cidade

Por Pe. João Batista Libânio

1. Ótica da reflexão sobre a cidade: lógicas e fé

A pretensão da razão é ordenar e dar significado à realidade. A cidade, à primeira vista, parece-nos um caos em todos os sentidos: desde o tráfego externo dos veículos até o trafegar interior de nossos sentimentos. Um primeiro movimento da nossa razão moderna consiste em descobrir nesse emaranhado de fios da teia urbana alguns desenhos. Analisando-os, sentimo-nos mais tranquilos e seguros, capazes de dar respostas.

A expressão “lógicas da cidade” traduz esse anseio de encontrar no mare magnum urbano um jogo ordenado segundo regras que nos cabe descobrir. A cidade aproxima-se mais de uma Olimpíada do que de uma partida. São muitos jogos simultâneos. Uns que afetam mais o lugar, outros o tempo, outros os centros de configuração, outros o lazer, outros a cultura e os valores, outros a participação e a mobilização, outros o poder e o trabalho. Cada jogo tem suas regras.

Num livro que escrevi recentemente[1], expus as regras que definem o nosso pensar, sentir, agir e viver na cidade. Chamei-as de “lógicas da cidade”. Não para deter-nos nelas por simples curiosidade de cidadãos urbanos que desejam conhecer seu habitat. Não. Interessa-nos a dupla relação dessa floresta de lógicas com a fé e a sua resposta. Em outras palavras, o subtítulo desse livro desvela-lhe o objetivo: “o impacto sobre a fé e sob o impacto da fé”. O sujeito principal são as lógicas da cidade. Daí parte o impacto e sobre elas a fé as rebate com seu arsenal próprio.

 

2. Lógicas do espaço e dos centros

O ser humano inicia sua caminhada civilizatória conquistando os espaços e criando centros de vida — tão diferente do animal que fica preso ao seu território, dominado pelos seus instintos. Este necessita de um processo de domesticação provocada pelo ser humano para mudar seu hábitat, mas mesmo assim dentro dos limites de seus instintos. E, quando violentamente transposto para outros espaços, reage de maneiras imprevisíveis, ora não o suportando e morrendo, ora desenvolvendo seus instintos predatórios de modo perigoso.

O ser humano cria seu ambiente. Faz da natureza sua cultura. Deter-nos-emos na mudança que as pessoas sofrem, ao deixarem o espaço rural das pequenas cidades e mergulharem nas megalópoles modernas. Que impacto tal mudança produz na compreensão e prática da fé?

A pequena cidade rural é tricêntrica: a igreja, a praça e a moradia. Visite-se uma cidadezinha de Minas ou de outro Estado. Lá está a praça principal como lugar do encontro, das notícias, das fofocas, dos namoros, das conversas. Plantada no alto, sobranceira à praça, está a matriz. Em volta estão as casas. Eis aí a geografia física e cultural-religiosa das pequenas cidades.

Geografia física: assim se construíram as cidades. Geografia cultural-religiosa: a vida das pessoas é regida por essa trilogia na sua ordem de importância e de significado. A igreja matriz regula a vida das pessoas. Dita as regras para os dias e horas. O sino marca o tempo, distinguindo as horas sagradas das profanas. A praça se governa pelo comando religioso. As moradias acolhem, silenciosas e respeitosas, as normas que descem da igreja matriz.

A grande cidade desfaz essa lógica. Embaralha fisicamente os centros e transforma radicalmente os espaços. Ela é policêntrica. Quanto mais avança a tecnologia, mais os centros se confundem. Está-se em casa e basta um toque no rádio ou na TV para entrar aí a praça com suas notícias, a igreja com suas celebrações. Estando na praça, basta um rápido digitar eletrônico para entrar na casa pelo celular. E assim por diante.

A principal consequência para a compreensão da fé e sua prática é o desfazimento da tradição. Na cidade tricêntrica, a religião, ocupando o centro principal, guardava e garantia autorizadamente as tradições a serem seguidas. As pessoas obedeciam a elas, pelo menos numa fidelidade externa. O dissenso, se houvesse, fazia parte do mistério pessoal e incomunicado. Na grande cidade desaparece essa instância. Física e visualmente, as igrejas se perdem na selva urbana de pedra. Cultural e religiosamente, outras instâncias deslocam a igreja para fora do circuito. Ocupam-lhe o lugar. Aí estão os meios de comunicação escrita, falada, televisiva. Os centros de cultura — escolas, institutos, universidades e outras entidades — multiplicam-se, diversificam-se, configurando com outros valores a cultura dominante. Em termos simples, processa-se uma secularização e esmaecimento do poder religioso.

A dimensão religiosa não desaparece. Modifica-se. Em vez de os comandos que definem as verdades, as condutas, as práticas religiosas e morais virem de fora, da instância autorizada da Igreja, deslocam-se para o indivíduo, para a esfera de suas escolhas livres e autônomas. Aliás, a individualização, a privatização, a autonomização da esfera religiosa fazem que ela cresça, diversifique. Assiste-se a uma inundação religiosa nas grandes cidades, sem comandos fixos centrados. E mesmo quando uma Igreja, como a católica, adquire presença social significativa, é-lhe atribuída tal autoridade não em virtude de sua vocação religiosa, transcendente, mas por causa do valor ético e sociopolítico. Haja vista o impacto das iniciativas da Igreja católica com as Campanhas da Fraternidade, com o Plebiscito da Dívida, com o Grito dos Excluídos. Já não é como a “matriz” que sinaliza com seu imenso relógio o comportamento dos aldeões, mas como uma instância que, pelo impacto de uma causa social, mexe com os interesses políticos da nação.

A fé na cidade impacta mais pelo seu testemunho público, social e político do que religioso. O lado religioso fica entregue à subjetividade dos indivíduos. Outra novidade: na cidade, a religião entra, independentemente dos seus desejos, em concorrência com outras expressões religiosas. Como a cultura do mercado tem influenciado profundamente a cultura urbana, as pessoas procedem na esfera religiosa de modo semelhante à maneira de agir no comércio. Aí o registro principal funciona na justa combinação do desejo e da oferta por meio do mecanismo da sedução. Traduzindo em linguagem corriqueira: compra-se aquela mercadoria que se deseja. Ela seduz-nos pela beleza, utilidade, qualidades oferecidas. As religiões, ao entrarem nesse jogo, sofrem a pressão do marketing. São tentadas a apresentar-se ao público como solução de seus problemas reais, imediatos. E nessa medida encontram aceitação.

A maior tentação para a fé na grande cidade é deixar-se envolver pela mentalidade da concorrência comercial. Em vez de referir-se à fonte da revelação, da qual tira sua inspiração, sua motivação e suas verdades, ela olha para as pessoas como público consumidor de ritos religiosos. Não importa como tal consumo se processa. Mede-se pelo número das pesquisas de opinião.

A fé cristã tem uma resposta radical a tal sedução. Quando o Mestre Jesus iniciou sua pregação, não se acomodou às expectativas messiânicas de seu tempo, ao “mercado religioso” dominante, mas afirmou a presença na sua pessoa do Reino de Deus. E aos poucos foi desvelando essa realidade em práticas de justiça, de predileção pelos pobres, de anúncio do amor infinito de Deus, que sempre perdoa. Contrariou radical­mente a cultura dos senhores da religião vigente. Como tal novidade era gigantesca, acrescentou sem rodeios: “Convertei-vos. Crede no Evangelho”. Essa é a resposta que a fé cristã oferece numa grande cidade para a qual a dimensão religiosa fica aprisionada na esfera pessoal, individual, arbitrária.

 

3. As lógicas do tempo e do lazer

O tempo da cultura tradicional regia-se pelo calendário. Sua característica principal era seguir o ritmo da natureza, expresso nas estações do ano, no fluir da semana e na sucessão do dia e da noite. A natureza cumpria a função de matriz primeira. Regulava a vida de maneira repetitiva, determinada, monótona, sem grandes surpresas. Tornava-se fácil inserir nesse quadro fixo as obrigações religiosas diárias, semanais, sazonais. A liturgia construiu-se segundo o tempo do calendário.

A grande cidade dissolve a regularidade do tempo, impingindo-lhe um ritmo acelerado. Rompem-se as barreiras das estações, sobretudo em nosso clima tropical. Suas relíquias ficam por conta do mercado, que aproveita as mudanças de estação para renovar os estoques. O ritmo da natureza submete-se ao mercado. É por ele controlado, mesmo quando já não tem nenhum significado em si. Desde que contrarie o mercado, ele não é levado em consideração. Assim, o domingo já não funciona como dia sagrado, mas como vantagem para negócios de lazer de fim de semana ou para ganhos suplementares de hora extra ou para aproveitar a ociosidade das pessoas, atraindo-as aos shoppings.

Quanto mais coisas há para fazer numa fração menor de tempo, como acontece na vida urbana, maior é a sensação da rapidez do tempo. A tecnologia permite o surgimento de meios rápidos de locomoção, de modo que, hoje, se alcançam longas distâncias em tempos curtos. Por volta de 6000 a.C., uma caravana de camelos desenvolvia a velocidade de até 12 km/h. Em 1600 a.C., por meio de carros de rodas, podia-se alcançar a velocidade de até 30 km/h. E hoje, com os aviões e naves espaciais? Basta comparar as viagens dos navegadores da antiguidade — que passavam até anos nas travessias oceânicas — com a velocidade do avião Concorde — que liga Paris a Nova Iorque em poucas horas. A velocidade da locomoção produz a sensação da rapidez do fluir do tempo.

Uma análise mais profunda leva-nos a descobrir na viragem filosófica da matriz da natureza, que pensava as realidades na categoria da essência, para a consciência histórica, que faz do presente critério de julgamento do passado, um momento importante na transformação da concepção do tempo.

Hoje não se tem tempo para nada. Eis uma sensação generalizada. Então, o que ocupa nosso tempo? Dois tipos de realidades. Há as imposições prementes da vida de trabalho ou, de estudo — duas estruturas que mantêm enorme força coercitiva sobre as pessoas. E o tempo que sobra? Cada vez menor, ele é disputado pelas seduções da vida urbana. A mais forte, porque entra em casa sem esforço, é a TV — nas suas diferentes formas: convencional, a cabo ou por satélite. A oração e as práticas religiosas disputam com essas seduções o tempo escasso que a vida urbana deixa livre às pessoas. Segue-se naturalmente drástica queda na frequência religiosa.

Acrescente-se que se propaga um clima generalizado de lazer, de busca de prazer. O tempo livre iguala-se a lazer. Este adquire autonomia em relação às outras realidades, especialmente às religiosas. Vivemos numa sociedade do lazer, sob o signo da tirania do prazer. Vale por ele mesmo. Antes o lazer se entendia como descanso, seja para retomar o trabalho ou estudo, seja mesmo como intervalo numa prática de oração. Hoje se dá o contrário. As outras realidades giram em torno do lazer. O comércio se apoderou dele, tornando-o importante fonte de renda para regiões e até países, sob o nome de turismo.

As práticas religiosas atraem quando percebidas como fonte de prazer, de gozo, de felicidade, de alegria. A vida modifica profundamente a natureza do desejo religioso. Ele não se orienta pelo valor objetivo, teologal do ato religioso, como se aprendia no catecismo, mas pela face externa de atração que ele exerce. Celebrações jubilosas agrupam multidões. Quanto mais festivo se torna o ato religioso, mais ele fascina as pessoas.

O risco da mercantilização da religião cresce na cidade. A gratuidade intrínseca ao ato religioso vê-se ameaçada. Nesse sentido, a fé cristã arvora-se em instância crítico-profética, proclamando a natureza transcendente, livre e gratuita do ato religioso, incompatível com a sua funcionalização. Ela se contextualiza, mas não se acomoda às distorções culturais. Declara-se então contracultural. Seu desafio é articular a experiência de felicidade, de gozo, que a experiência religiosa produz, com as exigências de compromisso, de gratuidade, de liberdade.

 

4. A lógica da pluralidade cultural

A lógica da cultura rural define-se pela tradição, garantida pela autoridade. A lógica da cidade constrói-se com base nas experiências dos indivíduos. A primeira é uniforme. A segunda, plural. Cada esfera desenvolve-se de modo independente, criando suas regras. Não aceita que outra as monitore, controle, tutele. No mundo rural, a tradição religiosa ocupava tal posto de proeminência, que lhe era natural ditar regras para todas as esferas da vida.

Na cidade, a autonomia de cada instância leva-a a especializar-se. Perde-se a visão de unidade. Com o avanço da modernidade e pós-modernidade, a fragmentação do saber aumenta. Cada um detém-se no seu campo e desconhece os outros. Só mais recentemente tem surgido, por causa da crise da razão ilustrada e objetivante, um discurso interdisciplinar, multidisciplinar e transdisciplinar. Permanece ainda forte tensão entre a tendência da crescente especialização e a do anseio por um pensar holístico, sistêmico, articulado[2].

Na cidade desenvolvem-se com rapidez muitas novas formas culturais. A cultura da imagem desloca para segundo plano o pensamento, a ideia, a reflexão teórica. Sente-se mais do que se pensa, intui-se mais do que se reflete, transita-se mais por “saltos imagéticos” do que se percorre um raciocínio lógico.

Ao lado dessa cultura icônica, há a valorização de uma cultura do espetáculo. Seu modelo consumado são os programas de auditório que enchem os vazios seculares dos domingos, ao perderem estes sua sacralidade litúrgica. Desfilam diante do espectador cenas fúteis, rápidas, ora leves, ora pesadas, de emoção e sensualidade. A surpresa, a novidade, a expectativa do que virá seguram a audiência, apesar da vacuidade dos conteúdos. As entrevistas exploram assuntos de ocasião que se queimam na rapidez de fogos de artifício.

A cultura de massa responde aos anseios da maioria das pessoas, cansadas com o ritmo pesado da semana e desejosas de amenidades. Retrata-lhes o cotidiano de modo que os ouvintes, leitores ou espectadores se reconheçam nessa cultura. As novelas traduzem-na em grau quase puro. Contudo, o cotidiano sozinho não consegue entreter muito tempo. Cansa. Daí uma pitada de idealismo, de alienação, de colorido. O equilíbrio genialmente conseguido entre a realidade e o sonho, o cotidiano e o idealizado, o banal e o sublimado, garantem à cultura de massa o seu sucesso.

O avanço das ciências da comunicação azeita a máquina da cultura da imagem, do espetáculo, de massa. O acesso se amplia de maneira gigantesca pela multiplicação dos canais. A prática do zapping torna-se comum, de maneira que se salta de canal em canal à busca de algo interessante. Frequentemente, ficam-se somente instantes num programa e pula-se para outro. E a entrada da internet modifica profundamente o universo da cultura globalizada. Dizem os entendidos que estamos na aurora de tal processo. Imaginem o que virá!

Um conjunto de formas culturais ligadas aos meios de comunicação de massa embaralha a realidade com o sonho, o real com o virtual. Em dado momento, entra-se numa avalancha de imagens e transmissões em que se perde a noção do espaço e do tempo. Sabe-se que nos estúdios se elabora como realidade o que não passa de composição de imagens. Não importa: tudo aparece como real, mas é somente virtual. E na internet essa forma virtual alcança patamares elevados. Travam-se relações com pessoas de cuja identidade real não se sabe nada. Elas são sinais na tela do computador. Autodefinem-se como querem, sem nenhum teste de realidade. O sexo, a idade, a proveniência, a religião, a cor, enfim, todos os dados de identidade são fornecidos ao sabor do jogo que os parceiros criam de modo assaz aleatório.

E qual é o impacto de todas essas formas culturais sobre a fé? A fé católica tinha-se habituado a identificar a necessária unidade com uma uniformidade protegida pela cultura tradicional monocolor. De repente, defronta-se com um pluralismo cultural novo. Já não são diferenças de feitio, de fachada de edifício, mas de fundamentos e estruturas. Não se descobrem as plataformas comuns. Crê-se estar em continentes diferentes sem perceberem-se os panoramas comuns. Às vezes, parecem opostos. E a fé depara-se com a difícil tarefa do discernimento dos veículos culturais compatíveis com sua identidade inegociável. Nem toda expressão cultural coaduna-se com as exigências da fé cristã. Em certos momentos, esta se contrapõe a dados culturais, questiona-os na sua verdade e bem, refuga-os como manifestação do erro, da ignorância ou mesmo da maldade humana. Momento doloroso para a fé. Arrisca-se, não ser entendida, a ser mal julgada, rejeitada à mesma medida que ela própria repele formas culturais urbanas.

A título de exemplo, veja-se a tendência de o mercado atravessar todas as realidades com suas regras. A mercantilização da fé cristã seria sua morte. Ela remonta ao mundo da graça, da gratuidade, da liberdade. Sob formas rudes, a tradição da Igreja rejeitou sempre a simonia. Hoje, a infecção mercadológica infiltra-se sutil e “antrazmente” perigosa. O cristão, na sua compreensão da fé, na sua prática, e a Igreja, na sua pastoral, carecem de muito discernimento para lidar com as expressões religiosas veiculadas pela mídia. Esta vive de marketing e enfoca todas as realidades sob o prisma da notícia, do número de audiência. Ora, se a fé insere-se nesse jogo, perde sua real verdade. Valerá dela o que McLuhan diz: “O meio é a linguagem”. A mensagem de fé assume o significado do meio, no caso, da sedução de ouvintes. Exatamente o que Jesus evitou fazer.

A fé cristã é, por excelência, comunitária. A cultura virtual alimenta-se do individualismo eletrônico. São antípodas. O cristão vive pela força da caridade que o leva ao irmão. A presença virtual dispensa o face a face. Prender-se na malha dessa cultura enfraqueceria a fé, que se contrapõe fortemente a ela, estimulando o encontro pessoal e comunitário.

 

5. A lógica dos valores

O choque faz-se ainda mais rude entre a fé cristã e os valores dominantes na cultura urbana. A cidade engendra uma crise dos valores vividos no mundo rural. Não há vazio de valores, mas substituição. A crise atual atinge dupla ordem de valores. Uns são valores tipicamente da modernidade, outros são valores autônomos.

Os valores autônomos têm consistência própria e permanente. Ultrapassam a contingência das épocas e dos lugares. Refletem a nossa estrutura antropológica. Na fugacidade e mutabilidade das realidades humanas, significam permanência, constância. São sempiternos, embora vividos concretamente de modo diferente. Nas diferenças, percebe-se uma invariante.

A verdade, o bem, a beleza, o amor, a esperança, a convivência, a solidariedade são valores autônomos entre outros. A importância, e imprescindibilidade deles para a existência pessoal, comunitária e social do ser humano definem sua importância. Daí é que a crise dos valores autônomos afeta a própria compreensão de humanidade.

A cultura urbana coloca a verdade no tribunal do relativismo, condenando-a a expressões subjetivas, passageiras, autofabricadas segundo o próprio gosto e conveniência. Os discursos ideológicos e políticos manipulam-na a seu bel-prazer. Justiça transforma-se em retaliação. Solidariedade significa defesa dos interesses corporativos, ainda que à custa do resto da sociedade. Honestidade se mede pela capacidade de esconder bem as falcatruas. O bem comum aprisiona-se nos rincões fechados dos grupos poderosos. A beleza pauta-se por revistas de moda, que ditam, de maneira fundamentalista as regras de seu cultivo. O amor confunde-se com a busca imediata do prazer, de que o(a) outro(a) não passa de objeto. Enfim, põe-se de pernas para o ar o universo axiológico básico tradicional.

A crise de valores da modernidade tem outra conotação. Ora significa uma perda de conquistas positivas da modernidade, ora reflete uma crítica aguda dos pretensos valores brandidos pela cultura urbana. A racionalidade instrumental, a laboriosidade em vista do lucro, a competitividade produtiva, o afã de prosperar a todo custo, o individualismo e tantos outros ditos valores da cultura moderna urbana entraram em zona de turbulência. Não se acredita, sem mais, neles. Para que tanta luta, trabalho, produtividade, para aos 40 anos morrer de enfarto? Constatam-se os avatares dessa cultura. E a chamada pós-moderna a traz ao tribunal da razão comunicativa, inclusiva, ética.

A fé cristã entra nesse jogo salvaguardando os valores autônomos e confirmando as críticas a muitos falsos valores da modernidade. Conta com a tradição, sem ser tradicionalista. Recorre à sabedoria que a Escritura e o Mestre Jesus nos deixaram em seus ensinamentos. Aí encontra luzes para confirmar a invariância dos valores autônomos da verdade, do bem, do amor. Não os deixa na generalidade abstrata, mas dá-lhes carne com base na prática de Jesus. Denuncia a enfermidade do fundamentalismo, que intuiu corretamente o risco da perda dos valores tradicionais, mas que reagiu equivocadamente, prendendo-se à sua literalidade. A fé cristã incorporou a hermenêutica. Discutindo com o bispo tradicionalista francês M. Lefebvre, Paulo VI lembrava que, para ser fiel à Tradição, era necessário interpretá-la e que o fundamentalismo é uma forma de infidelidade a seu espírito, por querer permanecer fiel à letra.

A fidelidade do cristão aos valores permanentes se mostra na interpretação para o momento atual. Desafio de dizer a verdade, o bem, a beleza, o sentido último, o amor para a cultura moderna urbana. Já não serão as mesmas formas tradicionais da cultura rural.

A revelação reforça muitas críticas feitas atualmente à razão instrumental, regida pela competitividade e pela busca da eficiência a qualquer custo, à centralidade do lucro e do mercado, ao primado absoluto do indivíduo, sobretudo como consumidor. Relembra a nossa dimensão de transcendência, de abertura ao irmão, de chamado à solidariedade.

Há, sem dúvida, um conflito de valores no interior de cada um de nós. A tradição teológica detecta aí a luta entre a graça e o pecado, que, no concreto de nossa vida, coexistem em medidas diferenciadas, conforme as nossas respostas aos apelos de Deus. Mas em ninguém existe a graça ou o pecado quimicamente puros. Essa ambiguidade radical pede a vigilância da razão e da fé. Na cidade, mais do que no campo, o cristão é solicitado a praticar o discernimento. Na cultura urbana, o entrelaçar dos valores e desvalores é mais íntimo e intrincado. As condições socioculturais dificultam até perceber-lhes a diferença. Bombardeia-nos uma propaganda insistente que mistura os valores.

Quanto mais avança a cultura urbana, mais clarividência e lucidez se requerem do cristão. A formação da fé do cristão torna-se mais exigente. A CNBB organizou a Segunda Semana Brasileira de Catequese, em Itaici, entre 8 e 12 de outubro de 2001, com representantes de mais de 500.000 catequistas. O tema central foi: “Com adultos, catequese adulta”, com o lema: “Crescer rumo à maturidade em Cristo”. Encontros como esse vêm precisamente ao encontro de uma fé vivida especialmente na cidade. D. Bonhoeffer já escrevia nas décadas de 30 e 40 (do século passado) sobre a nova condição de maioridade do homem moderno. A cultura rural e, portanto, a fé tradicional mantiveram as pessoas numa situação de menoridade. A cidade provoca um amadurecimento rápido, nem sempre harmônico e equilibrado, no campo da autonomia cultural. Se a catequese não acompanha tal processo, a prática religiosa esfuma-se e a fé perde-se no emaranhado dos novos questionamentos.

A resposta da fé vai na direção de seu aprofundamento. É altamente auspicioso o crescimento dos cursos de teologia para leigos em todo o país, o interesse por seminários, congressos, semanas e conferências sobre temas da fé.

Ao lado das exigências da razão, que pede esclarecimento da fé — fides quaerens intellectum (a fé que busca inteligência) —, a cidade gera uma situação paradoxal no que se refere à dimensão afetivo-existencial. Encurta os espaços das experiências humano-afetivas e suscita, por sua vez, um desejo crescente por elas. A pastoral urbana necessita levar em consideração essa quase contradição. Há sede de encontros humanos e há inércia em dar passos em sua direção. O segredo consiste em motivar o primeiro passo, difícil de ser dado por causa das condições adversas da grande cidade. Contudo, uma vez dado, brota o gosto de tais experiências. As formas de vivência e as ocasiões de reflexão sobre a fé precisam ter força atrativa interna, já que os fatores de coerção externos quase não funcionam.

 

6. Conclusão

As lógicas da cidade estão aí. Muito mais numerosas e complexas do que aqui retratamos de modo sumário e incoativo. Conhecê-las é um primeiro desafio. Afetam as nossas concepções mais profundas do espaço, do tempo, do lazer, das relações humanas, da cultura, dos valores. A fé sofre o impacto de todas essas lógicas, mas não de maneira puramente passiva. Segue a lei da física. A cada ação, surge uma reação proporcional. As ações da cultura urbana sobre a fé são impactantes. Cabe ao cristão que crê e à Igreja que organiza sua pastoral responder à altura. Eis aí o desafio da vivencia cristã na cidade e da pastoral urbana.



[1] J. B. Libânio, As lógicas da cidade. O impacto sobre a fé e sob o impacto da fé, São Paulo, Loyola, 2001.

[2] Nesta linha, escrevi um pequeno livro: A arte de formar-se, São Paulo, Loyola, 2ª ed., 2001.

Pe. João Batista Libânio