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Publicado em número 202 - (pp. 17-26)

O Espírito Santo na Liturgia

Por Pe. Gregório Lutz, cssp

Ao abordar um assunto que deve ser aprofundado, normalmente convém, num primeiro momento, esclarecer os conceitos que ocorrem no título ou tema. Em nosso caso, deveríamos explicar o sentido dos termos “Espírito Santo” e “liturgia”, para depois poder refletir sobre o Espírito Santo na liturgia. No entanto, já que a presente reflexão será apresentada dentro de um conjunto de artigos sobre o Espírito Santo, certamente pode ser dispensado tal esclarecimento sobre o Espírito Santo. A liturgia, por sua vez, não pode ser entendida fazendo abstração do Espírito Santo. Particularmente numa análise da origem da liturgia isso fica evidente. Por isso contemplaremos logo o nascimento da liturgia cristã e como ela foi vivida na Igreja apostólica. Sem analisar detalhadamente a história da liturgia sob o aspecto pneumatológico, deter-nos-emos mais no Concílio Vaticano II, por significar uma volta às fontes, sobretudo bíblicas, da liturgia. Numa segunda parte deste trabalho, descobriremos a presença e ação do Espírito Santo na liturgia de hoje, analisando dimensões e elementos gerais e as diversas celebrações, também o ano litúrgico, a piedade popular e, finalmente, a inculturação. Ficará evidente nesta caminhada que a liturgia é um permanente pentecostes.

 

I. O ESPÍRITO SANTO NA LITURGIA, CONFORME A BÍBLIA E A HISTÓRIA

 

1. O Espírito Santo na origem da Igreja e da liturgia

O Concílio Vaticano II descreve a liturgia como um momento da história da salvação. Depois de ter salientado o ponto culminante desta história, quer dizer, a paixão, ressurreição e ascensão do Senhor, o mistério pelo qual Cristo, morrendo, destruiu a nossa morte e, ressuscitando, recuperou a nossa vida, o Concílio constata: “Do lado de Cristo dormindo na cruz nasceu o admirável sacramento de toda a Igreja” (SC 5). A seguir, o Concílio diz que, portanto, o mistério pascal não deve ser apenas anunciado, mas, para levar a efeito este anúncio, ele deve também ser celebrado na liturgia (cf. SC 6).

Vê-se aqui com evidência a origem da Igreja e da liturgia na morte de Jesus, como esta é descrita no evangelho de são João. A Igreja nasceu do lado aberto de Jesus, jorrando sangue e água (cf. Jo 19,33s). Na iconografia esta cena frequentemente é representada da seguinte maneira: do lado aberto do Senhor jorram o sangue e a água para dentro de um cálice, segurado por uma mulher que está sozinha debaixo da cruz. Esta mulher não é simplesmente Maria, a mãe de Jesus, mas a representação da Igreja. O cálice lembra — assim como o sangue — particularmente a eucaristia. No entanto, jorrou também água, e esta lembra especificamente o batismo. O batismo e a eucaristia eram, na época apostólica, sem dúvida, os momentos mais intensos da vida da Igreja, do mesmo modo como eles são hoje para nós os sacramentos principais. Assim se vê, portanto, a origem dos sacramentos e da liturgia junto com a origem da Igreja, e o nascimento da Igreja com a origem da liturgia.

O simbolismo do rio que jorra do lado aberto de Jesus, todavia, não se esgota aí. Conforme são João relata no seu evangelho (7,37-39), Jesus tinha prometido rios de água viva, nos quais o evangelista vê o dom do Espírito Santo que só podia ser dado quando Jesus tivesse sido glorificado. Vejamos o que afirma o texto do quarto evangelho: “No último dia da festa, o mais solene, Jesus, de pé, disse em alta voz: ‘Se alguém tem sede, que venha a mim, e beba quem crê em mim!’ — conforme a palavra da Escritura: Do seu jeito jorrarão rios de água viva. Ele falava do Espírito que deviam receber aqueles que tinham crido nele; pois não havia ainda Espírito, porque Jesus não fora ainda glorificado” (Jo 7,37-39). Lembremos que, conforme a mais antiga tradição de interpretação, “seu seio” é o seio de Jesus. A glorificação de Jesus aconteceu para são João na cruz, pois, aludindo a sua ascensão, Jesus diz, na conversa noturna com Nicodemos, que o Filho do Homem deve ser levantado, como Moisés levantou a serpente no deserto (cf. Jo 3,13s). Ora, sendo exaltado na cruz, jorraram do lado de Jesus rios de água viva, que simbolizam o Espírito Santo. Nesse contexto da doação do Espírito Santo na hora da exaltação na cruz podemos também entender as palavras com as quais são João descreve a morte de Jesus: “… e entregou o espírito” (Jo 19,30). Já que quase sempre nas afirmações do quarto evangelista devemos contar com um segundo sentido profundo, além do primeiro óbvio, certamente não se pode excluir que são João, com essas palavras, tenha querido dizer também que Jesus deu o Espírito prometido, além de ter entregue sua vida nas mãos do Pai.

O evangelho de são João não conhece pentecostes como dia da vinda do Espírito Santo e do nascimento da Igreja. Para ele também o último ato da páscoa de Jesus, da sua passagem deste mundo para o Pai, que é a doação do Espírito Santo, coincide com a páscoa da morte e ressurreição. No entanto, no evangelho de são João não falta totalmente um desdobramento da páscoa, da sua paixão e glorificação e da doação do Espírito Santo. Pois, no dia da ressurreição, Jesus aparece vivo no meio dos apóstolos e lhes diz: “’Como o Pai me enviou, também eu vos envio’. Dizendo isso, soprou sobre eles e lhes disse: ‘Recebei o Espírito Santo. Aqueles a quem perdoardes os pecados ser-lhes-ão perdoados; aqueles aos quais retiverdes ser-lhes-ão retidos’” (Jo 20,21-23). As palavras “como o Pai me enviou” dizem claramente que a missão de Jesus continua naquela dos apóstolos, isto é, da Igreja. Mas, para que essa missão seja possível, Jesus dá o Espírito Santo. E logo ele diz também em que consiste essa missão: em perdoar ou reter os pecados. Essas palavras geralmente foram entendidas como sendo do sacramento da penitência. Mas o perdão dos pecados não se restringe a esse sacramento. O primeiro sacramento do perdão é o batismo, e na eucaristia nos é oferecido o sangue de Jesus derramado pela remissão dos pecados. Também à unção dos enfermos atribuímos em certos casos o perdão dos pecados que não foram perdoados anteriormente. Podemos ver resumida nestas palavras de Jesus sobre o perdão toda a missão da Igreja, em continuidade com a missão de Jesus mesmo, que ele formulou conforme o evangelho de são Marcos nestes termos: “Cumpriu-se o tempo, e o Reino de Deus está próximo. Arrependei-vos e crede no evangelho” (Mc 1,15). Em todo o caso, também no dia da sua ressurreição Jesus expressou, pelas suas palavras e pelo seu sopro sobre os apóstolos, querer que sua missão no mundo continuasse na Igreja e particularmente na celebração do perdão dos pecados, pela presença e ação do Espírito Santo.

São Lucas descreve, no seu evangelho e nos Atos dos Apóstolos, a origem da Igreja e da liturgia de outra maneira. Mas também para ele é o Senhor exaltado que envia do Pai o Espírito Santo e faz assim nascer a Igreja com sua atividade central, que é a liturgia. Que haja conforme são Lucas um espaço de tempo de 40 dias entre a ressurreição e a ascensão de Jesus e que dez dias mais tarde venha o Espírito Santo, é secundário em relação à origem da Igreja e da liturgia pela vinda do Espírito Santo. Significativo é que eles “estavam todos reunidos no mesmo lugar” (At 2,1), certamente rezando, como logo depois da ascensão do Senhor, quando “unânimes perseveraram na oração” (At 1,14), quando veio o Espírito prometido. E a pregação de são Pedro, logo depois da descida do Espírito, não é como uma liturgia da Palavra que introduz a liturgia sacramental do batismo dos três mil no dia de pentecostes? São Pedro já tinha explicado de antemão que a última finalidade da conversão e do batismo fosse o dom do Espírito Santo aos que iam ser batizados (cf. At 10,37s). Logo no nascimento da Igreja os apóstolos exerceram a missão, que era também a de Jesus, na força do Espírito recebido.

O pentecostes de Jerusalém, 50 dias depois da ressurreição de Jesus, repetiu-se. Houve nascimento da Igreja não apenas na morte de Jesus e no dia de pentecostes, mas também determinadas Igrejas particulares tiveram sua origem pela vinda do Espírito de Deus, conforme nos relatam os Atos dos Apóstolos. Foi o que ocorreu na Samaria, onde os discípulos recém-batizados por Filipe receberam — pela imposição das mãos dos apóstolos são Pedro e são João — o Espírito de Deus e assim uniram-se à Igreja de Jerusalém (cf. At 8,14-17). Na casa do centurião romano Cornélio de Cesareia, onde Pedro batizou os primeiros gentios, veio sobre eles o Espírito Santo (cf. At 10). Igualmente em Éfeso, onde Paulo batizou, em nome de Jesus, os discípulos de João Batista (Ef 19,1-6). Em todos esses casos, foi celebrando que as Igrejas nasceram.

De fato, podemos fazer nossa a afirmação de tantos padres da Igreja antiga, e que sempre de novo se repetiu: como o Filho de Deus assumiu um corpo humano pela descida do Espírito Santo sobre a virgem Maria, assim nasceu seu corpo místico pela descida do mesmo Espírito, completando-se desta maneira a páscoa do Senhor no nascimento da Igreja com a sua liturgia. Nesse contexto podemos logo lembrar que o mesmo Espírito desce sobre o pão e o vinho que apresentamos na eucaristia, e dá assim origem ao corpo eucarístico de Cristo. Podemos, com toda a razão, dizer que o Espírito Santo é a alma da Igreja, que especialmente na liturgia se manifesta e realiza como corpo de Cristo com seus muitos membros.

 

2. O Espírito Santo na liturgia da Igreja apostólica

Melhor e mais detalhado do que qualquer outro escrito do Novo Testamento, são Paulo nos mostra nos capítulos 11 a 14 da 1ª carta aos Coríntios como na Igreja apostólica se celebrou a liturgia. Notemos que ele desenvolve sua teologia do corpo de Cristo e dos dons ou carismas do Espírito Santo dentro deste contexto litúrgico. Lembremos também que o apóstolo usa o termo “ekklesia” tanto quanto fala da Igreja como unidade dos cristãos ou corpo de Cristo, quanto das assembleias dos cristãos de Corinto (por exemplo: 1Cor 11,18.22; 12,28; 14,4.5.19.23.28.33-35). Deve ser claro também que são Paulo, sobretudo nos capítulos 12 e 14 desta carta pensa pelo menos em primeiro lugar, quando ele fala de ministérios, naqueles que nós chamaríamos litúrgicos.

Ora, todos os dons ou carismas, todos os ministérios, toda a vida e atividade da Igreja, especialmente da Igreja reunida em assembleia, vêm, para são Paulo, do Espírito Santo. Os dons são simplesmente chamados de dons do Espírito (12,1). É o mesmo Espírito que cuida da vida e do crescimento da Igreja, que lhe deu a vida. E, por outro lado, é neste Espírito que nós podemos chamar Jesus de Senhor (12,3).

Aquilo que são Paulo diz nesses capítulos aos coríntios sobre o Espírito Santo na liturgia, combina perfeitamente com outras afirmações dele sobre a presença e ação do Espírito Santo na Igreja. Lembremos, neste momento, apenas alguns textos que nos falam em geral, mas claramente da ação do Espírito Santo em relação à liturgia. Textos quase paralelos àquele no qual ele diz que não podemos dizer “Jesus é o Senhor”, a não ser no Espírito Santo (1Cor 12,3), encontramos nas cartas aos Romanos (8,15) e aos Gálatas (4,6), onde lemos que podemos chamar Deus de Pai porque recebemos o Espírito de filiação. Este Espírito nos foi dado no batismo, e é sobretudo na celebração litúrgica que chamamos Deus de Pai. No mesmo capítulo da carta aos Romanos são Paulo escreve: “Não sabemos o que pedir como convém; mas o próprio Espírito intercede por nós com gemidos inefáveis, e aquele que perscruta os corações sabe qual o desejo do Espírito; pois, é segundo Deus que ele intercede pelos santos” (8,26s). Em todo o caso, já a partir desses textos de são Paulo podemos chegar à conclusão de que ele escreve com plena razão na carta aos Filipenses: “Prestamos culto pelo Espírito de Deus” (3,3).

Resta ainda fazer uma referência à relação da liturgia com a vida dos membros da Igreja, da sociedade e do mundo. Encontramos um exemplo eloquente, para nos mostrar como são Paulo vê esta relação, em 1Cor 11,17-34. É bom lembrar que, imediatamente após esse texto, seguem as explicações de são Paulo sobre o corpo de Cristo e os múltiplos dons do Espírito Santo, que visam à união e à edificação da comunidade. São Paulo repreende os coríntios não porque fizessem eventualmente algo de errado na celebração da eucaristia como tal, mas porque eles não vivem aquilo que celebram: a união dos membros do corpo de Cristo e o amor fraterno, que são dons exímios do Espírito de Deus para a edificação da Igreja. Os coríntios procuram o próprio proveito e não se doma semelhança de Jesus, que se entregou na última ceia e no seu amor até o fim.

Nesse contexto, podemos ainda lembrar que são Paulo usa o termo “liturgia” geralmente no sentido de uma obra de caridade (Rm 15,27; 2Cor 9,12; Fl 2,25.29s) ou para o ministério do evangelizador (Rm 15,16; Fl 2,17). Nesse último texto da carta aos Romanos são Paulo se apresenta como “‘liturgo’ de Cristo Jesus para os gentios, a serviço do evangelho de Deus, a fim de que a oblação dos gentios se torne agradável, santificada pelo Espírito Santo” (Rm 15,16). São Paulo diz, portanto, que só pela ação do Espírito Santo também a “liturgia” da vida é um sacrifício agradável a Deus. Mas é precisamente nisso que são Paulo vê o último sentido da sua missão como da missão de todos os cristãos: “Exorto-vos, irmãos, pela misericórdia de Deus, a que ofereçais vossos corpos como hóstia viva, santa e imaculada a Deus: este é o vosso culto espiritual” (Rm 12, 1). E era exatamente esta a missão de Jesus, do Servo do Senhor, sobre o qual repousava o Espírito de Deus, para que evangelizasse os pobres. Foi este sacrifício espiritual que Jesus completou na cruz e que ele nos mandou viver na vida e celebrar na liturgia.

 

3. O Espírito Santo na liturgia ao longo da história

Não é possível neste artigo apresentar toda a história da consciência da Igreja sobre a presença e ação do Espírito Santo em sua liturgia. Dos primeiros tempos da Igreja, antes da formação das diferentes famílias litúrgicas, temos poucos documentos a esse respeito. Na patrística grega, no entanto, eles são frequentes. As liturgias orientais que se formaram naquela época mostram uma forte pneumatologia. Mas na liturgia romana prevaleceu certo cristomonismo, que corresponde à prevalência do cristomonismo na teologia e espiritualidade em geral. Isso se observa particularmente na eclesiologia ocidental, que insistiu mais na dimensão cristológica e nos elementos institucionais, ao passo que deixou os elementos carismáticos em segundo plano e apresentou a função do Espírito Santo como subalterna na obra de Cristo e como garantia da instituição. Tal cristomonismo observa-se também na doutrina sobre os sacramentos: eles devem ser instituídos por Cristo, neles Cristo e sua obra estão presentes. Nem há uma invocação explícita dó Espírito Santo no cânon romano. Tudo isso dá a impressão de que existe grande falta de sensibilidade pneumatológica na teologia e na liturgia ocidentais. Aliás, uma própria teologia litúrgica desenvolveu-se apenas em nosso século, no movimento litúrgico. Mas nem ela deixou de ser cristomonista. A melhor prova disso são a encíclica “Mediator Dei” do Papa Pio XII, de 1947, e a constituição do Concílio Vaticano II sobre a sagrada liturgia.

 

4. O Espírito Santo na constituição do Vaticano II sobre a liturgia

No esquema para a constituição conciliar (“Sacrosanctum Concilium”) sobre a liturgia, que a comissão preparatória tinha elaborado, o Espírito Santo era mencionado apenas três vezes, e, mesmo assim, muito rapidamente. Citando Ef 2,21ss, o artigo 2 disse: “A liturgia… edifica aqueles que estão na Igreja em templo santo do Senhor, em habitação de Deus no Espírito”. E o artigo 6, citando Rm 8,15: “Pelo batismo os homens recebem o espírito de adoção de filhos, no qual clamamos ‘Abba, Pai’”. Finalmente, no artigo 43, citando o papa Pio XII: “A preocupação pelo incremento e renovação da liturgia é justamente considerada como uma passagem do Espírito Santo pela sua Igreja”.

Longe de quererem determinar a natureza da liturgia, essas afirmações supõem, no entanto, uma propriedade essencial da liturgia, que a liga com a ação do Espírito Santo. São suas duas componentes: a linha descendente e a linha ascendente; isto é, a ação salvífica de Deus e a resposta cúltica da Igreja. A primeira é apenas insinuada, quando se fala da edificação em habitação de Deus no Espírito. A segunda é mais bem articulada pela constatação de que o Espírito de Deus nos capacita à glorificação de Deus.

Os padres conciliares, sobretudo os do Oriente, notaram e chamaram a atenção para o fato de que o Espírito Santo tinha sido quase esquecido no esquema da constituição sobre a liturgia. Isso aconteceu sobretudo porque o esquema era, nas suas afirmações teológicas, fortemente baseado na encíclica “Mediator Dei” do Papa Pio XII, na qual dominava uma visão cristológica da Igreja e da liturgia, enquanto o elemento pneumatológico estava quase ausente. No entanto, como já vimos, por essa via a encíclica e o esquema conciliar estavam bem dentro da tradição ocidental.

Na última hora o esquema conciliar foi corrigido por três acréscimos que tinham por objetivo dar um colorido pneumatológico à constituição “Sacrosanctum Concilium”. Embora essa meta não tenha sido alcançada, deu-se forte acento nesse sentido, especialmente com o terceiro acréscimo feito. No artigo 5, onde se fala da missão do Filho de Deus, inseriu-se “ungido pelo Espírito Santo”. No artigo 6, onde lemos que Cristo enviou os apóstolos, acrescentou-se “cheios do Espírito Santo”. Evidentemente, os padres conciliares acharam importante salientar, para uma adequada compreensão da liturgia, que nela a Igreja exerce sua missão — como a exercia Jesus — no Espírito Santo.

O terceiro acréscimo, no fim do artigo 6, é o mais importante. Depois de ter falado da ação litúrgica da Igreja apostólica, o Concílio constata que desde pentecostes “a Igreja nunca deixou de reunir-se para celebrar o mistério pascal: lendo tudo quanto nas Escrituras a ele se referia, celebrando a eucaristia… para louvor de sua glória” — e aqui foi acrescentado: “pela força do Espírito Santo”.

A constituição sobre a sagrada liturgia foi o primeiro documento discutido e aprovado pelo Concílio Vaticano II. O Espírito Santo, entretanto, foi descoberto tarde demais para ter o seu devido peso neste primeiro documento conciliar. Durante a discussão dos demais documentos, ele estava mais presente na consciência dos padres conciliares. Sem recuperar plenamente o que foi omitido na constituição sobre a liturgia, o Concílio chegou a exprimir, algumas vezes explicitamente, a dimensão pneumatológica da liturgia. Lemos, por exemplo, no artigo 50 da constituição sobre a Igreja que na liturgia “o Espírito Santo age sobre nós mediante os sinais sacramentais”. O artigo 5 do decreto sobre os presbíteros diz primeiro que Cristo exerce na liturgia o seu múnus sacerdotal em nosso favor “por meio do Espírito” e, mais adiante continua dizendo: “Na santíssima eucaristia está contido todo o bem espiritual da Igreja, isto é, o próprio Cristo, nossa páscoa e pão vivo, que dá aos homens a vida mediante a sua carne vivificada e vivificadora pelo Espírito Santo”.

Mesmo não tendo dado, em seus documentos, ao Espírito Santo o lugar que lhe compete na liturgia, o Concílio Vaticano II abriu para ele uma porta que não se fechou mais. Pelo contrário, na fase pós-conciliar, quando foram elaborados os novos livros litúrgicos, essa porta se abriu mais, de modo que podemos dizer que o Concílio também, a esse respeito, significou uma volta às fontes, às origens da liturgia cristã, que nasceu e se celebrou sempre, embora em nosso passado ocidental por muito tempo inconscientemente, pela força do Espírito Santo.

 

II. O ESPIRITO SANTO NA LITURGIA HOJE

Antes de apresentarmos, nesta segunda parte, os resultados que os princípios e normas do Concílio Vaticano II surtiram com respeito à presença e ação do Espírito Santo conforme os novos livros litúrgicos nos diversos sacramentos e em outras celebrações, no ano litúrgico e na piedade popular, analisaremos a liturgia de hoje em geral sob o aspecto pneumatológico em várias dimensões: como acontecimento histórico-salvífico e memorial, como celebração da palavra e celebração sacramental, assim como seus elementos verbais, seus gestos e objetos simbólicos e o silêncio.

 

1. O Espírito Santo opera também hoje a salvação na liturgia…

 

a) …como acontecimento histórico-salvífico

Como já foi mencionado quando refletimos sobre a origem da liturgia, o Vaticano II apresenta a liturgia em primeiro lugar como um momento da história da salvação. A obra da salvação da humanidade, que teve seus prelúdios no Antigo Testamento, foi completada por Cristo Jesus, sobretudo pela sua morte e ressurreição (cf. SC 5). Ela não deve ser apenas anunciada, mas também celebrada na liturgia, para que possa ter seu efeito pela nossa aceitação. Deus respeita a liberdade das pessoas, de modo que não impõe a salvação a ninguém, mas a oferece, para que cada um possa aceitá-la ou não. Quem se abre para a ação de Deus e a aceita, é salvo.

Ora, toda a obra salvífica é realizada pela força do Espírito Santo. A Sagrada Escritura, sobretudo os profetas e o Novo Testamento não deixam duvidar disso. Mas essa mesma ação salvífica de Deus é celebrada na liturgia. Portanto, já é a ação do Espírito Santo que celebramos na liturgia; mas é também ele que possibilita que essa ação litúrgica seja para nós um fato salvífico. Como isso pode acontecer fica mais claro quando analisamos e tentamos entender o que é memória.

 

b) …quando fazemos memória

Não basta simplesmente afirmar que um fato histórico se torna atual na celebração litúrgica. Também não é suficiente dar a esse fenômeno o nome de memória ou memorial. Devemos tentar compreender, na medida do possível, como isso pode acontecer, particularmente como tal atualização ou memória pode ter eficácia salvífica.

Temos precedentes claros na Bíblia. É, aliás, uma realidade que os cristãos herdaram do povo da antiga aliança. Quando os hebreus celebravam anualmente a festa da páscoa, o fato histórico passado do êxodo, da libertação do Egito, tornou-se presente para eles. O texto do Antigo Testamento mais eloquente nesse sentido é, sem dúvida, aquele do livro do Êxodo que manda celebrar a festa dos ázimos e diz: “Lembrai-vos deste dia em que saístes do Egito, da casa da escravidão; pois com mão forte Iahweh vos tirou de lá; e por isso não comereis pão fermentado. Hoje é o mês de Abib, e estais saindo” (Ex 13,2s). O mesmo “hoje” ouviu-se da boca de Jesus na sinagoga de Nazaré, quando ele tinha lido o texto do profeta Isaías que começa assim: “O Espírito do Senhor está sobre mim, porque ele me ungiu para evangelizar os pobres”, e então explicou: “Hoje se cumpriu aos vossos ouvidos esta passagem da Escritura” (Lc 4,18-21). Nos dois casos, o “hoje” se realiza numa celebração litúrgica, e, no segundo, são Lucas deixa claro que Jesus disse este “hoje” na força do Espírito do Senhor.

 

c) …na liturgia da palavra

O que aconteceu na festa da páscoa dos hebreus e na sinagoga de Nazaré dá-se também quando nós proclamamos em nossas celebrações a palavra do Senhor. A fé na presença de Deus que nos fala na proclamação das leituras bíblicas, já é expressada pela conclusão das perícopes “Palavra do Senhor”, e sua eficácia pela conclusão do evangelho “Palavra da salvação”. Mas como é que Deus se torna presente e a salvação acontece, quando proclamamos a palavra de Deus? A antiga versão do cântico “A nós descei, divina luz…” no-lo explica. Aí pedimos cantando, na segunda estrofe: “Divino Espírito, descei, os corações vinde inflamar e as nossas almas preparar para o que Deus nos quer falar”. Ora, se o Espírito de Deus vem visitar o nosso coração, isso não e um acontecimento salvífico?

Que tal memória não é algo meramente subjetivo fica claro se consideramos o seguinte: quando ouvimos a proclamação das obras de Deus, abrimos com os nossos ouvidos também o nosso coração para Deus. E será que Deus nos deixaria abri-lo em vão? Não. Quando nós nos lembramos dele, ele se lembra de nós. Sua palavra salvadora nos atinge realmente. Torna-se vida em nós, essa palavra que é a segunda pessoa da Santíssima Trindade, Jesus Cristo, que veio e vem por obra do Espírito Santo. Seja neste momento permitido repetir: como pela descida do Espírito de Deus sobre Maria o Verbo Divino, a palavra de Deus em pessoa, tornou-se viva no seio da Virgem, e como pela descida do Espírito Santo na páscoa de Jesus, que se completou em pentecostes, nasceu a Igreja com a sua liturgia, assim o mesmo Espírito Santo torna viva e atuante na Igreja e em cada um de nós a palavra de Deus, que também hoje é, na verdade, o Filho de Deus mesmo.

Do mesmo modo como na liturgia da palavra o Espírito Santo opera a nossa salvação, assim também ele nos dá condições de dar nossa resposta de ação de graças e louvor ao Pai. Só porque o Pai nos santifica pelo seu Filho no Espírito Santo, podemos nos dirigir a ele “por nosso Senhor Jesus Cristo na unidade do Espírito Santo”.

 

d) …e na liturgia sacramental

Se o Espírito Santo leva a efeito a obra da salvação já na proclamação ou celebração da palavra, quanto mais o faz na celebração de um rito sacramental! O núcleo celebrativo dos sacramentos é uma proclamação das maravilhas operadas por Deus para a salvação da humanidade. Só que essa proclamação não acontece apenas em linguagem verbal, mas também simbólica. Seja lembrado, como que entre parênteses, que o Espírito Santo não é a palavra de Deus que se encarnou, mas que se manifestou através de símbolos como o vento, o sopro, a pomba, a água e o fogo. Nos ritos centrais dos sacramentos se faz o pedido que venha o Espírito santificador especialmente através dos gestos, quase sempre pela imposição das mãos e, frequentemente, pela unção. Tais gestos reforçam a oração, que assim se torna mais plenamente humana, porque também corporal. As palavras, sobretudo aquelas que chamamos de fórmulas sacramentais ou essenciais, explicam os gestos, por exemplo, o banho de água no batismo, a unção na crisma e na unção dos enfermos, a entrega do pão e do vinho consagrados em comida e bebida na eucaristia, a imposição das mãos principalmente nos sacramentos da penitência e da ordem. O mesmo pode ser dito quanto aos ritos secundários de vários sacramentos, principalmente da imposição das mãos e das unções, também nos sacramentais — por exemplo, numa dedicação de igreja ou numa bênção de abade e abadessa, igualmente nas bênçãos do dia­ a dia, e não somente naquelas que são reservadas aos ministros ordenados.

Seria bom poder refletir com mais detalhes e profundidade particularmente sobre a epiclese na eucaristia e nos outros sacramentos e sacramentais, mas as reflexões propostas no quadro que agora está à nossa disposição parecem ser suficientes para nos mostrar como a ação do Espírito Santo em nossa liturgia é essencial para que nela possa ser levada a efeito a nossa salvação.

 

2. O Espírito Santo manifesta-se em inúmeros elementos da liturgia

Além dos ritos centrais das nossas celebrações litúrgicas e de alguns ritos secundários que acabamos de lembrar, inúmeras outras expressões verbais e simbólicas, e até mesmo o silêncio, mostram a presença e ação do Espírito Santo na liturgia. Mesmo sendo impossível enumerar todos esses elementos, alguns deles, lembrados à guisa de exemplo, já nos mostram que toda a liturgia é um contínuo pentecostes.

 

a) Elementos verbais

Podemos começar esta parte da nossa reflexão recordando as palavras com as quais começamos geralmente as nossas celebrações: Em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo. Elas já exprimem e reforçam em nós a fé na presença e ação das três pessoas divinas que operam a salvação que estamos celebrando desde que o espírito de Deus pairava sobre as águas, no início da criação que o Pai realizou pela sua palavra, até o final dos tempos, quando “o Espírito e a esposa dizem: Vem, Senhor Jesus!” (cf. Ap 22,17-20), para que o Reino seja entregue ao Pai.

Muitas vezes quem preside uma celebração saúda a assembleia com as palavras finais da segunda carta de são Paulo aos Coríntios: “A graça de nosso Senhor Jesus Cristo, o amor do Pai e a comunhão do Espírito Santo estejam convosco” (2Cor 13,13). A última parte dessa saudação é uma verdadeira epiclese. E a assembleia confirma que Deus nos reuniu no amor de Cristo. É o amor de Cristo que o levou a evangelizar os pobres e a entregar sua vida por eles; quer dizer, o amor também do Pai, o amor em pessoa, que é o Espírito Santo, que pousou sobre ele; o mesmo “amor de Deus que foi derramado em nossos corações pelo Espírito Santo que nos foi dado” (Rm 5,5). Reparemos nessa saudação as palavras “comunhão do Espírito Santo”. Essa comunhão se pede mais explicitamente nas segundas epicleses das orações eucarísticas da liturgia romana atual. Na segunda oração eucarística, por exemplo, pedimos “que, participando do corpo e do sangue de Cristo sejamos reunidos pelo Espírito Santo num só corpo”.

 

b) Gestos

Como no caso dos elementos verbais, também dos gestos podemos lembrar somente um ou outro exemplo, além da imposição das mãos e da unção, que já foram analisadas brevemente. Não só a imposição das mãos, mas igualmente sua elevação exprime a ação do Espírito Santo. Como pela imposição das mãos pedimos que ele venha (de cima), assim pela elevação das mãos e dos braços abertos (para cima) nos dirigimos a Deus, ao Pai pelo Filho no Espírito Santo.

A prostração — que conhecemos, sobretudo do rito das ordenações — é um antigo ritual, às vezes acompanhada por uma fórmula epiclética ou uma imposição das mãos. A genuflexão pode ser vista como uma expressão gestual da exclamação do apóstolo são Tomé: “Meu Senhor e meu Deus!” (Jo 20,28) ou daquela de são Paulo — dizendo podermos fazê-la somente no Espírito Santo: “Jesus é o Senhor” (1Cor 12,3).

Da reunião em assembleia litúrgica já falamos brevemente ao analisar a saudação paulina do fim da 2ª carta aos Coríntios. Na assembleia reunida podemos realmente ver um novo pentecostes, em que o Espírito Santo reuniu representantes dos mais diversos povos, de modo que todos eles entenderam os apóstolos falar em sua própria língua, uma inversão da torre de Babel, que dispersou a humanidade em povos com línguas diferentes e que não mais se entenderam. De fato, não há outras assembleias debaixo do sol em que se reúnem pessoas de origem e condição tão diferentes como numa assembleia litúrgica.

 

c) Objetos

O objeto que fala mais claramente do Espírito Santo é certamente o óleo (de oliva ou outro óleo vegetal), usado na liturgia como óleo dos catecúmenos, dos enfermos e do sagrado crisma. Como os gestos que mencionamos, também o óleo é um símbolo bíblico do Espírito Santo. Sobretudo o crisma exprime a presença do Espírito Santo sobre quem é ungido com ele (o batizado, o crismado, o ordenado), como o Espírito pousava sobre o Messias, o verdadeiro Ungido do Senhor.

O bálsamo que é acrescentado ao óleo na confecção e bênção do crisma, exprime o bom odor de Cristo (cf. 2Cor 2,15), que cada cristão ungido pelo Espírito Santo deve irradiar. O mesmo sentido pode ter a água de cheiro, usada sobretudo no Nordeste do Brasil. Também o incenso pode expressar, além da adoração e do sacrifício, o bom odor de Cristo e dos cristãos.

 

d) O silêncio

O silêncio na liturgia não é uma interrupção da celebração, uma pausa, mas antes um ponto culminante da participação plena na liturgia, o espaço da mais intensa comunhão de vida com Deus. Ele é marcante, por exemplo, nas ordenações. Em silêncio, o bispo impõe as mãos sobre os ordenandos. Tal silêncio é, da nossa parte, expressão da mais profunda disponibilidade para o Espírito Santo e, por outro lado, Deus fala no silêncio. Para ouvi-lo devemos calar. É sumamente conveniente fazer um momento de silêncio depois da proclamação das leituras bíblicas. Um silêncio prolongado depois da comunhão, quase no final da missa, para que pelo Espírito Santo possamos interiorizar o que ouvimos, saborear a comida e a bebida que Deus mesmo nos ofereceu. Só assim a palavra de Deus ouvida e a comunhão recebida trarão frutos em nossa vida.

 

3. O Espírito Santo nos diversos sacramentos e celebrações

Memória da obra salvífica de Deus, especialmente da morte e ressurreição de Jesus Cristo, se faz em todos os sacramentos e nas demais celebrações litúrgicas, embora às vezes mais explícita e outras vezes mais implicitamente. Em todos os sacramentos, incluindo o matrimônio, temos epiclese. Trata-se de invocação do Espírito Santo, geralmente acompanhada ou precedida pela imposição das mãos.

Na missa, invocamos, em todas as orações eucarísticas, com exceção da primeira, duas vezes o Espírito Santo: imediatamente antes do relato da instituição com a imposição das mãos sobre o pão e o vinho, e, depois da anamnese e oblação, sobre a assembleia.

No batismo, o Espírito Santo é invocado sobre a água batismal. Mesmo se no tempo pascal se usa água abençoada na vigília pascal, reza-se um louvor sobre a água no qual se lembra a ação do Espírito Santo. O batismo mesmo se realiza em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo. Na unção pós-batismal com o óleo de crisma evoca-se mais uma vez a ação do Espírito Santo, lembrando o novo nascimento da água e do Espírito.

Na confirmação, o rito central consta da invocação, com a imposição das mãos sobre todos os crismandos, do Espírito Santo Paráclito, o Espírito de sabedoria e inteligência, de conselho e fortaleza, de ciência, de piedade e do temor de Deus. O rito essencial é a unção com óleo, acompanhado das palavras: “Recebe, por este sinal, o Espírito Santo, dom de Deus”.

Na penitência, impõem-se as mãos durante a absolvição e menciona-se que Deus enviou o Espírito Santo para a remissão dos pecados.

Nas ordenações, o rito central consta da imposição das mãos em silêncio e da oração consecratória, durante a qual se invoca, por exemplo para os diáconos, o Espírito Santo para o ministério conferido. Na ordenação do bispo unge-se ainda a cabeça do ordenado e do presbítero as mãos.

Na unção dos enfermos, o presbítero impõe as mãos, reza um louvor sobre o óleo dos enfermos abençoado pelo bispo, ou ele mesmo benze o óleo para a unção, em ambos os casos invocando o Espírito Santo, para depois ungir o enfermo pedindo que o Senhor lhe venha em auxílio com a graça do Espírito Santo.

Na celebração do matrimônio, pede-se na bênção nupcial que Deus envie sobre o casal a graça do Espírito Santo, para que, impregnados da caridade divina, permaneçam fiéis na aliança nupcial.

 

4. Ao longo do ano litúrgico

A presença e ação do Espírito Santo ao longo do ano litúrgico mereceria um estudo à parte. Mas alguns acenos já nos podem mostrar como o Espírito de Deus está sempre presente, desde a celebração da espera da sua primeira vinda, no advento, até a espera da sua volta na glória, no fim do ano litúrgico.

Antes de mais nada devemos lembrar que, durante todo o ano litúrgico, celebramos sempre a memória do mistério pascal de Jesus Cristo e de toda a obra da salvação. Esta salvação foi operada na força do Espírito Santo. Vários momentos desta ação do Espírito na história de Deus com a humanidade são celebrados explicitamente durante o ano. Por exemplo, na anunciação do Senhor, que comemoramos também no advento, além da preparação da encarnação do Filho de Deus no Antigo Testamento, particularmente por meio dos profetas. Explicitamente festejamos a ação do Espírito Santo na história da salvação também na festa do batismo do Senhor. Nos primeiros domingos do tempo comum lembramos como Jesus, na força do Espírito, assumiu sua missão de evangelizar os pobres, de curar os doentes, de revelar a todos o amor do Pai para conosco — que é, em pessoa, ele mesmo, o Espírito de Deus.

No primeiro domingo da quaresma acompanhamos Jesus sendo tentado no deserto, para onde o conduziu o Espírito (cf. Lc 4, 1). No segundo domingo da quaresma estamos com Jesus no monte Tabor, onde ele nos mostra a obra redentora completa, que se realizará também em nós. No terceiro, quarto e quinto domingos da quaresma do ano A acompanhamos os catecúmenos em sua caminhada para a páscoa, guiados também nós pelo Espírito, que se manifesta nos pontos altos dos evangelhos da samaritana, do cego de nascença e de Lázaro ressuscitado, anunciando-nos a obra do Espírito na água do batismo — a ser recebido pelos catecúmenos e renovado na noite pascal pelos já batizados.

No tríduo pascal, no tempo da páscoa e em pentecostes comemoramos a vinda do Espírito Santo sobre a Igreja nascente, vinda que se atualiza também em nossas celebrações.

Na segunda parte do tempo comum é o Espírito Santo que nos faz entender as Escrituras, que nos possibilita a comunhão com o Pai e nos fala através do seu Filho. E é no Espírito Santo que podemos sempre de novo dar a nossa resposta de filhos ao Pai, chamando-o de Abba, em nossas celebrações e em nossa vida, até que no fim do ano litúrgico o Espírito clama com a esposa, que somos nós, a Igreja: “Vem, Senhor Jesus!” (cf. Ap 20,17.20).

Também nas festas marianas, da mãe de Jesus, e dos outros santos e santas, celebramos a obra do Espírito Santo, que levou esses nossos semelhantes àquela santidade que só Deus, através do seu Espírito, pode operar.

No entanto, o Espírito Santo está presente ao longo do ano litúrgico não apenas como aquele que preparou e cooperou com Jesus Cristo na obra da salvação da humanidade; ele coopera também conosco de modo que haja verdadeira memória, atualização eficaz desta salvação na Igreja e no mundo. Pois é nele que nos atinge aquilo que comemoramos. É através dele que a obra da salvação é levada a efeito em nós.

 

5. O Espírito Santo na piedade popular

Embora o Concílio Vaticano II não tenha incluído a piedade popular na liturgia em sentido próprio, na realidade é difícil marcar claramente uma linha de divisa entre liturgia e piedade popular, sobretudo quando — como o faz o Concílio — consideramos os sacramentos como pertencentes à liturgia.

Sintomático é, nesse sentido, o documento final de Puebla, que trata da liturgia, da oração particular e da piedade popular num único capítulo.

Se lembramos a história, particularmente a origem das devoções populares como o terço e o anjo do Senhor, constatamos que elas surgiram como liturgia popular. Mais ainda, se levamos em conta o sentido e conteúdo dessas devoções, como poderíamos negar que aqueles que só nelas se sentem na presença e em comunhão com Deus, assim possam ser salvos? Tal negação não é possível, porque não podemos excluir que o Espírito Santo esteja presente e atuante também nas devoções populares. Isso importa mais do que saber se uma devoção merece ou não a qualificação de “litúrgica”.

Quando começamos nossas orações ou nosso dia “em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo”, ou quando concluímos um salmo ou outra oração com o “Glória ao Pai e ao Filho e ao Espírito Santo”, quando assim nos abrimos para Deus por força do seu Espírito, ele está presente. Isso vale ainda mais quando no terço contemplamos os mistérios da encarnação, da paixão e morte e da glorificação do Senhor, quer dizer, a obra que realizou no Espírito. Por que ele estaria menos presente nessas orações devocionais do que na liturgia das horas, que elas queriam substituir? Uma razão é porque a liturgia das horas tinha-se tomado inacessível para o povo simples.

Qual a diferença qualitativa, por exemplo, da oração do hino “Vinde, Espírito Criador”, rezado por um leigo ou quando rezado por um ministro ordenado ou um monge, quando eles o rezam na liturgia das horas?

Não há motivo para duvidar de que o Espírito Santo esteja presente também em tais devoções e que ele santifique também esses devotos.

 

6. O Espírito Santo na vida que celebramos na liturgia

Agora não se quer dizer que toda a vida seja liturgia. Assim não usaríamos mais o termo “liturgia” no seu sentido próprio. Mas, como levamos a vida para dentro da liturgia, agradecerão aquilo que vivemos de bom e pedindo perdão por aquilo que omitimos ou não fizemos bem, como as nossas súplicas brotam dos nossos problemas, dificuldades e sofrimentos, assim a liturgia tem também sua repercussão na vida, se ela for autenticamente celebrada. A liturgia cristã não pode estar desligada da vida, já que Cristo na última ceia celebrou sua vida e morte e nos disse que devemos fazer o mesmo em memória dele. A liturgia é o ponto culminante para o qual tende toda a vida e ação da Igreja e, ao mesmo tempo, é a fonte donde provém toda a sua força (cf. SC 10).

Não é sem razão que na própria liturgia se estabelece, às vezes, explicitamente um paralelo entre a ação do Espírito Santo na criação do mundo e a transformação do mundo em Reino de Deus, numa nova criação. Lembremos a esse respeito a reflexão tantas vezes repetida na festa de pentecostes: Enviai, Senhor, o vosso Espírito, e tudo será criado, e renovareis a face da terra.

Quantos impulsos para o advento de um mundo novo surgem também em nossos dias das celebrações das nossas comunidades! Ou pensemos nos incentivos que nos são dados por João Paulo II, como o fizeram também seus antecessores!

A fonte de tudo isso não estaria na liturgia?

 

7. O Espírito Santo na inculturação da liturgia

Menos ainda do que sobre os outros aspectos da presença e ação do Espírito Santo na liturgia, pode-se apresentar uma reflexão abrangente com respeito à inculturação. Certamente não podemos negar que o Espírito Santo tenha renovado a nossa liturgia também nas décadas pós-conciliares. Parece que isso vale ainda mais no Brasil do que em outras partes do mundo, embora os passos que se deram em nosso país para uma inculturação oficial sejam, por enquanto, tímidos.

Podem-se comparar as nossas celebrações de hoje às de antes do Concílio Vaticano II. Ou, então, as celebrações realizadas no Brasil — sobretudo as das CEBs —, com as liturgias da Europa e do norte da América. Pode-se perceber aí — para usar as palavras do Papa Pio XII a respeito do movimento litúrgico — “o passo do Espírito Santo na Igreja” aqui e agora.

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Depois do que refletimos sobre o Espírito Santo na liturgia, não podemos mais duvidar da presença do Espírito Santo em nosso coração, no coração da Igreja e do mundo, sobretudo quando estamos reunidos na celebração da liturgia. O dom de Deus por excelência, o Espírito Santo, e todos os seus dons, estão sendo derramados sobre aqueles que não se fecham diante dele. Também e, sobretudo, na liturgia podemos continuar nossa caminhada com o nosso grande defensor e consolador, cheios de esperança, pelo terceiro milênio adentro.

Pe. Gregório Lutz, cssp