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Publicado em novembro-dezembro de 2010 - ano 51 - número 275 - (pp. 38-44)

Compreendendo o problema da pedofilia em sua profundidade

Por Pe. João Batista Libanio, sj; Pe. Nilo Ribeiro Júnior, sj

INTRODUÇÃO

Há profunda diferença entre informação e transmissão. A informação se prende ao presente e funciona horizontalmente. Lança-nos à vista fatos advindos de diferentes partes do mundo de forma simultânea. Quando se volta para o passado, recolhe elementos dos programas de dados da internet, como o Google, sem perspectiva histórica. Tudo parece acontecer pela primeira vez, sem conexão com o passado.

A questão da pedofilia não é exceção. Caiu do céu como algo aberrante de hoje e de homens de Igreja. E caiu sobre a Igreja a triste pecha de conivente. Se há verdade nos fatos, no entanto, não esqueçamos dados fundamentais para interpretar corretamente o acontecido, tanto em tempos longamente passados como recentes.

A história continua, na expressão de Cícero, “mestra da vida”. Ela nos permite conhecer melhor o presente, evitar erros passados e abrir-nos para o futuro. Oferece-nos distanciamento de interpretação em face do calor e da paixão da discussão.

A Grécia, o império romano não só praticavam a pedofilia, dispondo crianças para a satisfação sexual de adultos, como também a pensaram como paideia, educação, no sentido de introdução de jovens na vida sexual.

A China conheceu a castração de meninos para vendê-los a ricos pederastas como comércio legítimo durante séculos. O mundo islâmico, para compensar a rigidez das relações entre homens e mulheres, admitiu tolerância no campo da pedofilia. Alguns países, até o século XX, como a Argélia, acenavam para a fantasia de europeus devassos como “jardim de delícias” (Carvalho, 2002). De tempos em tempos, a imprensa divulga notícia sobre o turismo sexual, em que adolescentes de ambos os sexos caçam algum dinheiro satisfazendo sexualmente turistas ou homens de negócio, longe de suas esposas. Talvez esteja aí a mais terrível e escandalosa venda pedofílica.

Na Antiguidade e até hoje, o cristianismo se pôs ao lado da defesa da criança. O próprio mistério da Encarnação, a prática de Jesus e seus ensinamentos conferem a ela dignidade única. Jesus ousa propô-la como símbolo do reino de Deus (Mt 18,4; Mc 10,15). Identifica a acolhida a elas como a si próprio (Mt 18,5). Terrível soa a ameaça a quem escandalizar uma criança. Que pior escândalo do que abusar de sua inocência? “Melhor lhe fora que se lhe pendurasse ao pescoço uma grande pedra de moinho, e fosse afogado na profundeza do mar” (Mt 18,6).

A narrativa de Jesus, como história da Encarnação, faz-nos compreender a vulnerabilidade da carne, especialmente da criança, do pequeno, do pobre, e põe-na no centro de sua pregação e prática. Cabe uma leitura das Bem-aventuranças na perspectiva da criança: bem-aventurados os que as acolhem e deles é o reino de Deus.

Tal dado bíblico-teológico inquestionável não evitou, porém, os pecados de cristãos e de homens da hierarquia eclesiástica. Precisamente estes caem atualmente sob o juízo da opinião pública.

Em face da Igreja institucional, tecem-se duas histórias possíveis. Com justeza e com inúmeros exemplos, existe trajetória esplendorosa de feitos, de santidade, de riquezas culturais únicas. A cultura ocidental não se entende sem sua contribuição. Ao lado, porém, corre outra trajetória. Escura, carregada de pecados, de crimes, de Inquisição, de intolerância, de guerras. A verdade, portanto, situa-se na mistura, na ambiguidade, no jogo de graça e pecado, de beleza e fealdade, de grandeza e vileza. A pedofilia pertence a seu lado obscuro e pecaminoso. Detenhamo-nos nesse tema com base no contexto que nos cerca.

 

 

1. Quando tudo era pecado

Não faz muito, reinava no interior da Igreja certo tipo de moral que depreciava o prazer sexual, de modo que qualquer deleite venéreo fora do matrimônio se cobria da gravidade do pecado mortal, merecedor do inferno eterno, mesmo por um único ato.

Por influência do estoicismo, do dualismo platônico difuso, do maniqueísmo e, mais recentemente, do jansenismo, a moral sexual católica muitas vezes se viu descaracterizada. A matéria, o sexo, o prazer pendiam para o lado negativo em prol do espírito, da renúncia, da penitência corporal. Perdia-se o contato com a antropologia unitária da Revelação. O prazer sexual acabou sendo visto como algo da ordem da concupiscência, e esta, como inclinação para o mal.

Nesse mesmo contexto, a doutrina da Igreja sobre a sexualidade passou, pouco a pouco, a formular-se em torno da ênfase na procriação em detrimento do caráter amoroso do vínculo. Sexo e casamento se vincularam de tal forma, que a única maneira de superar a presumida “concupiscência da carne” se dava pela abstinência ou pelo matrimônio.

Invocava-se, ademais, a lei natural. A natureza sinaliza-nos o fim para o qual tende a sexualidade que Deus inscreveu nela. Contrariá-la significa opor-se à vontade de Deus.

Não cabe, neste artigo, adentrar-nos nos meandros da atual teologia moral no tocante à lei natural. Interessa-nos, aqui, acentuar o clima de culpabilização que a moral da Igreja gerou e o menoscabo da consciência das pessoas por conta da insistência na objetividade imperante das normas morais. Pois somente nesse contexto se entendem tanto a reação liberalizante da década de 1960 como o refluxo atual.

J. Delumeau pesquisou amplamente a pedagogia do medo exercida pela Igreja (Delumeau, 1993) e a forte culpabilização dela decorrente (idem, 2003). Com efeito, a culpabilização reforçou a visão patológica sobre a sexualidade, desvirtuando-lhe o verdadeiro sentido. Este brota da teologia de um Deus que cria na liberdade e para a liberdade. Os problemas sexuais associam-se a uma deturpação da imagem de Deus e, respectivamente, da imagem do ser humano como liberdade.

Basta recordar aqui, mais uma vez, o peso do jansenismo, por sua visão pessimista e moralizante da sexualidade que o próprio Magistério rejeitou. Carregou as tintas dos pecados do mundo tanto no campo da sexualidade como no da desobediência aos ensinamentos da Igreja, buscando apoio, sobretudo, numa leitura unilateral de santo Agostinho. Acentuava-se o contraste entre a grandeza de Deus e a fraqueza do ser humano, apresentando um Deus terrível com desígnios insondáveis e decretos incompreensíveis.

A ideia da Revelação por decretos se prolonga até a modernidade e se concentra na Dei Filius do Concílio Vaticano I. Nessa visão de Deus legislador, a sexualidade não escapa de ser pensada em função da lei jurídica separada da lei moral que a precede e está ligada a uma antropologia da liberdade.

Sem Deus, o ser humano, impotência total, procura só o prazer, o deleite. A íntima relação estabelecida entre sexo e concupiscência da carne deu margem à perda da novidade do sexo como lugar do desejo e do amor e, consequentemente, abriu precedente para pensar um Deus que se encoleriza com o ser humano pelo fato de este tender sempre ao pecado quando pensa e pratica a vida sexual.

 

2. Romperam-se as barreiras

Não se estranha que tal visão negativa do sexo e de um Deus punidor explodisse e as barreiras até então levantadas entre os desejos humanos e sexualidade ruíssem. Na elite, já de longa data, o movimento libertino (séc. XVII) defende o homem movido pelo prazer e rejeita os ensinamentos e a prática relativos à vida sexual propostos pela Igreja. Aproveita as falhas do clero para desmoralizar a posição da Igreja. Exalta-se a libertinagem em oposição a todo puritanismo e repudia-se todo interdito da sexualidade. Um silêncio incomodado sobre o sexo da tradição medieval de cunho agostiniano contrastava com a “linguagem confessional do sexo” imperante no seio de uma sociedade feudal cristianizada, como observa M. Foucault.

Vindo para nossos dias, assistimos ao fenômeno da irrequieta “juventude transviada” da década de 1950, passando pela rebelião de maio de 1968 (“é proibido proibir”), até a liberação pós-moderna quase sem limite.

Segundo Tony Anatrella, a liberação sexual refere-se a todo interdito à sexualidade. Perpetua-se na juventude o ideal da infantilização do sexo. Em termos psicoanalíticos, os jovens não captam a lei fundamental da sexualidade, que consiste na mútua oblatividade, para permanecerem no desejo da pura autossatisfação. Talvez isso explique por que, em dado momento, a cultura atual se mostrou tolerante para com a pedofilia (Anatrella, 2001, p. 264). Irrompe verdadeira balbúrdia sexual que coloniza até o menor cantinho da modernidade democrática: prazeres prometidos ou exibidos, cartazes alardeando a liberdade, preferências descritas, performances avaliadas ou procedimentos ensinados, há de tudo (Guillebaud, 1999, p. 18).

Escandaloso paradoxo: fala-se ostensivamente do sexo, das suas diversas expressões, sem preconceitos, mas sente-se real “mal-estar cultural do sexo”. Esconde-se, em muitos casos, inquietante angústia social que grita ao Estado para legislar e reprimir abusos sexuais. Ela pretende substituir a lei moral, o papel da consciência, por intervenções jurídicas.

Séculos de obscurantismo e repressão cedem espaço para tolerância ou negligência também no caso da pedofilia. Haja vista o filme de Louis Malle, Le souffle au coeur, em que o incesto de mãe e filho se desdramatiza e se pinta com muito carinho. Ainda por cima, selecionou-se o filme para o Festival de Cannes (1971), onde foi bem acolhido. O próprio diretor comenta nas colunas do respeitado diário Le Monde, diante de protestos de alguns leitores: “Em meu filme tudo se passa com naturalidade, com transparência, com verdade, creio eu. Se a moral tradicional aí não tem lugar, pior para ela”. Outros comentários o elogiavam por “rasgar véus, rompendo com falsos mistérios e vergonhosos silêncios” (Guillebaud, 1999, pp. 25ss).

Nos Estados Unidos e na Europa, circula literatura nas décadas de 1960 e 1970 em torno da revolução sexual, que quebrava o imaginário do patriarcalismo, do machismo, da misoginia e da homofobia. A prática dos contraceptivos simboliza o domínio da cultura sobre a natureza. Numa palavra, defendeu-se “a liberdade do desejo”, a autonomia da libido. Não se estranhou então certa desculpabilização, teorização e até encantamento em relação à pedofilia, ao defender o direito da criança à erotização. O adulto projeta sobre a criança desejos próprios não amadurecidos. Um estudo desse período encheria páginas de exemplos da exaltação do amor físico com crianças de menos de 15 anos, como o romance em que uma ninfeta de 12 anos cede aos arroubos de um quinquagenário (Lolita, também adaptado para o cinema) ou declarações de filósofos com enredados arrazoados pedofílicos. Enfim, “o amor pedófilo torna-se todo luz quando o colocamos no campo da erótica pueril” (Guillebaud, 1999, p. 28; o autor exemplifica com inúmeros dados essa onda sexualizante que envolve a pedofilia).

Esse quadro confunde-nos. Tiremos três lições. A períodos de repressão seguem-se, não raro, explosões exageradas de liberação. Assim, a repressão sexual gerou a liberação sexual. Perdem-se parâmetros. Em segundo lugar, não tarda que se reaja a tais ondas com outro tipo de repressão, também ela nem sempre equilibrada. Em terceiro lugar, misturaram-se dois problemas bem diferentes: pedofilia e homossexualidade. A homossexualidade vivida responsavelmente, como expressão do amor ao outro, não se identifica, de modo nenhum, com pedofilia. A pedofilia diz respeito ao amor do infante porque o pedófilo investe nele o objeto sexual jamais encontrado na integração psíquica, uma vez que tende a fixar-se na fase primitiva da sexualidade (Fleig, 2010). O pedófilo tem aspectos psíquicos de desintegração sexual, ao passo que a homossexualidade não pertence ao quadro das patologias.

 

3. Reação da sociedade

Onde estamos? Vivemos dupla reação aos casos de pedofilia. Uma doentia, outra sadia.

As reações cegas e explosivas escondem traços enfermos. Temor, pânico apoderaram-se da sociedade atual no que se refere à pedofilia a partir do caso monstruoso de Marc Dutroux que explodiu no verão de 1996. Vieram a público os inúmeros assassínios perpetrados por esse criminoso belga. Abusou sexualmente de seis meninas, das quais quatro assassinou. E, nessa onda, outras violências sexuais inimagináveis inundaram a opinião pública mundial: pais incestuosos, professores e padres pedófilos, esposas suspeitas, patrões lúbricos, turismo sexual, pornografia exótica cujo alvo eram crianças, baby sitters de intenções equívocas etc.

A verdade dos fatos gerou sentimento nefasto de suspeita generalizada e de angústia denunciadora. As escolas, as famílias, as sacristias tingiram-se de desconfiança, de dúvida. Em gestos sem maldade, imaginavam-se logo sinais de incesto ou pedofilia. Passou-se da tolerância para o medo extremo. Verdadeira obsessão. A sociedade da liberdade sexual virou um campo de medo do sexo, já de outra natureza.

Que se esconde detrás desse excessivo comentar e propalar de crimes sexuais? Além de a imprensa beneficiar-se da publicidade vendável da notícia, desloca-se o problema de toda uma cultura incentivadora do prazer, do sexo desvairado, para pontos nodais criminosos. Esquece-se o todo que os gera. Fixa-se no ponto central do quadro e desconhece-se sua totalidade. Pedofilia não significa unicamente molestar sexualmente crianças. Tem mais implicações.

A condenação contemporânea à pedofilia se relaciona com a invenção da infância, que desponta na modernidade, em torno do século XVIII. Freud já havia caracterizado esse fenômeno, ao denominar a criança de “sua majestade, o bebê”. A criança, para os pais contemporâneos, não apenas tende a simbolizar a criança idealizada e sonhada, mas passa a ocupar o lugar daquela criança perfeita que os próprios pais não conseguiram ser para seus pais. Assim, o filho adorado cumpriria, no imaginário dos pais, a função primeira de sanar a decepção que estes causaram à geração anterior. Torna-se absolutamente insuportável para os pais perceber o menor sinal de falha no filho. Isso lhes revelaria o próprio fracasso como filhos. A cena da criança pura e inocente à mercê do repugnante pedófilo encobriria o insuportável desejo de uso desse bebê no mundo psíquico dos pais. Quando atacamos, de modo implacável, alguma coisa em alguém, a clínica psicanalítica levanta a suspeita de tratar-se de algo que não suportamos reconhecer em nós mesmos. Reações extremadas contra a pedofilia revelam sentimentos pedofílicos enrustidos.

A reação sadia leva-nos a ir fundo na natureza da pedofilia. A sociedade realmente democrática, a transparência na vivência familiar e nos universos em que transitam as crianças — creches, escolas, clubes, sacristias, programas e propagandas infantis etc. — permitem coragem e clareza na discussão do tema.

Onde está a raiz da pedofilia? Não diretamente no campo sexual, mas na docilidade, seduzibilidade, ductilidade da criança. Ela se deixa atrair por adultos que lhe oferecem afago, carinho, aconchego, algum agrado. Entrega-se indefesa, confia no outro sem suspeita. Essa atitude desperta no adulto perverso ou doente o desejo de possuí-la sob diversas formas, também a sexual. O fundo doentio atravessa todas elas.

Naturalmente o campo sexual, lugar de eros, mostra-se ambivalente por natureza. A mesma criança, que suscita afago e carinho, mostra-se vulnerável e desperta o desejo de possuí-la na sua indefesa confiança. O eros se perverte, neste caso, pela própria natureza ambígua do corpo e do sexo humanos.

A estrutura pedófila prefere posições e profissões de poder sobre crianças. De acordo com o psicanalista Sócrates Nolasco, professor da UFRJ, “a pedofilia é um conflito da ordem da negação de excitações que constituem o sujeito. Os homens são os que mais fazem isto a eles mesmos, pois, assim, creem que serão homens”. O psicanalista explica que há dois aspectos recorrentes nas situações que configuram a pedofilia: “Um deles é que o adulto envolvido tem algum poder sobre a criança, podendo ser exercido tanto pela sedução quanto pela coerção sobre ela. O outro se refere à abordagem ambígua deste adulto em relação à criança — ele deixa margem para que a criança fique confusa no que tange à abordagem sexual feita por ele”. E arremata: “A pedofilia é a marca do empobrecimento e da miséria interior. Ela atesta o declínio de um sujeito que está preso a dimensões de sua vida que desconhece e não sabe como gerenciá-las” (Nolasco, 2010).

Faz parte da fantasia pedofílica dominar o outro sem que ele o saiba. Configura-se em devaneio de poder que abusa da criança (Calligaris, 2002). Explora a confiança e a ignorância da criança: verdadeira traição. Os pais depositam confiança no professor, no padre, no publicitário, no médico, no terapeuta, e estes aproveitam da profissão para seduzir a criança.

Não esqueçamos, porém, os inúmeros casos de pedofilia denunciados nos Conselhos Tutelares e no Disque Denúncia Nacional de Abuso e Exploração Sexual contra Crianças e Adolescentes, praticados pelos próprios pais, padrastos, tios e até avós. A pedofilia não se restringe a nenhum ambiente determinado, mas revela questão de ordem psíquica ou de desvio de personalidade do pedófilo.

A sociedade tem percebido menos, com conivência e até mesmo aplauso dos pais, o pervertedor setor pedofílico da publicidade. Entram em questão o mundo da propaganda, programas de auditório, DVDs, sites e filmes. Neles, aparecem crianças cuja imagem provocante, com toques sexualizantes, associa-se a produtos de consumo. Há países sérios que proibiram radicalmente propagandas com crianças. Puritano jornal de São Paulo exibia uma foto de página inteira de uma criança pelada conduzida pela mão da mãe num contexto de propaganda. Por que essa criança desnuda? Alguém se pergunta? Por puro acaso?

Apresentadores/as de programas infantis não se acanham de sensualizar e sexualizar as crianças com danças, gestos, exibições. Não só as que se exibem, mas as que assistem aos programas acabam afetadas. A ética e a legislação aqui no Brasil ainda não deram conta de tais aberrações. Que os pais, pelo menos, reparem nos programas a que os filhos menores assistem e interfiram como educadores. Caberia à escola, à pastoral, tratar dessas questões nas aulas, na catequese, enquanto a legislação dorme na inconsciência.

 

4. O caso da Igreja

Essa longa reflexão prévia nos prepara para abordar a questão da pedofilia por parte de eclesiásticos. Como dissemos acima, sobre a história da Igreja cabem dois discursos extremos: o da glória e o da infâmia.

Deixemos de lado a ambos e trilhemos um caminho realista. Alegremo-nos e agradeçamos pelas graças recebidas e transmitidas. Arrependamo-nos e corrijamos os males feitos até a punição exemplar, caso necessária. Nada escandaliza quem conhece a natureza humana, capaz tanto de grandiosos heroísmos como de gigantescas perversidades. A história recente das guerras mostrou como a culta Europa, de inegáveis grandezas espirituais, artísticas e humanas, desceu aos subterrâneos escuros do extermínio em massa dos campos de concentração, da fabricação de armas só para matar, da exploração econômica (ainda em vigor) de países e continentes. A Igreja não se isenta de tal ambiguidade. Ela não justifica nenhum crime, antes apela para contínua vigilância, retratação, punição.

A publicidade ensinou à hierarquia que não basta a condenação teórica da pedofilia em documentos. Cabe-lhe a responsabilidade de evitar que tais casos aconteçam e se repitam por meio de medidas severas preventivas e punitivas. A criança vítima da pedofilia merece a primeira atenção, e não o encobrimento da fama do clérigo e da Igreja. A justiça e a caridade regem tal situação. Sem justiça, a caridade falseia. Sem caridade, a justiça claudica. Conjugar ambas, nos casos de pedofilia, desafia a hierarquia. A justiça e a caridade dizem respeito, primeiro, à vítima e em seguida ao culpado.

Há na campanha publicitária em torno da pedofilia algo mais que o grave delito e seu acobertamento. Difunde-se real ojeriza ao discurso do magistério eclesiástico. E por quê? A cultura atual não tolera muitos dos seus aspectos e então aproveita a ocasião para bombardeio geral.

Num clima de liberação sexual, acusa-se o discurso do Magistério de moralista. Então, quando alguém desse universo falha, advém ótima ocasião para acusação. Não se suporta hoje uma linguagem fixista, congelada, que se impõe pela autoridade, que condena quem diverge, calando teólogos. Critica-se-lhe o caráter clericalista, centralizador e centrado em si mesmo com citações só de si, a imagem idealizada de si mesma, a atitude de quem trata o leigo como menor de idade, de quem não preza a liberdade, de quem se mostra cheia de suspeitas, de quem se apoia em rede de denúncias, de quem se revela arrogante como detentora única da verdade (Rouet, 2010).[1] Num mundo secular, democrático, realista, valorizador da mulher, crítico em relação às tradições, de discurso desvelado, desconfiado de todo corporativismo, de verdades provisórias e discutíveis, tem-se a impressão de que o Magistério fala linguagem oposta: religiosa, autoritária, machista, tradicional, cercada de mistérios, corporativista clerical, dogmática, idealista.

Talvez soe o momento de a Igreja não apenas dizer bem alto o mea-culpa, mas enveredar humildemente por outro caminho. Esperam-se dela o exercício concreto de colegialidade e a transparência institucional. Deseja-se outro discurso sobre a sexualidade que lhe contemple o lado sadio e fecundo, socialmente integrado, com repercussões na religião e seus ritos.

Às vezes, imaginamos equacionar o problema ao dar-lhe solução mental, verbal, esquecendo a complexidade da realidade. A sexualidade ou o eros, como expressão do humanum, guardam certo mistério. Não se deixam aprisionar totalmente. A técnica, a linguagem e a instituição não o exaurem nem o aprisionam. Pedem uma reflexão interdisciplinar e aberta que permita aprender com os outros e se responsabilize socialmente pelos seus erros e acertos. Nada de sacralizar ingenuamente a sexualidade, mas sim decifrar-lhe a riqueza além do puramente racional. A Igreja participa desse processo de decifração não como instituição detentora da verdade, mas como aprendiz do real onde Deus manifesta o seu projeto. Lidamos, em última análise, com a liberdade humana para o bem e para o mal. Nenhuma instituição escapa de tal dialética.

 

Conclusão

Essa crise, provocada pelo desvelar da pedofilia entre alguns eclesiásticos com complacência silenciosa da hierarquia, pede dela mudanças no nível do discurso com respeito à verdade, à objetividade, à subjetividade dos envolvidos, sem ceder à tentação de encontrar bode expiatório que a isente de conversão. Não tem sentido voltar aos tempos da Inquisição e de caça às bruxas. Nada melhor que transparência, honestidade, justiça e caridade.

No nível da prática pastoral, cabe substituir o afã de poder centralizador pelo ideal cristão de serviço aos demais, especialmente às crianças indefesas em face do abuso sexual.

E, na perspectiva espiritual, a Igreja, na humildade e conversão, descobre a dimensão ministerial, carismática, a renovar-lhe o lado institucional, abrindo-se ao diálogo, assumindo discurso antes sapiencial que peremptoriamente dogmático e partilhando a verdade com outras linguagens, instituições e ciências.

 

BIBLIOGRAFIA

ANATRELLA, T. A diferença interdita: sexualidade, educação, violência. São Paulo: Loyola, 2001.

CALLIGARIS, C. “A fantasia do pedófilo”. Folha de S. Paulo, São Paulo, 25/4/2002. Caderno E, p. 8.

CARVALHO, Olavo de. “Cem anos de pedofilia”. O Globo, Rio de Janeiro, 27/4/2002. Disponível em <http://www.olavodecarvalho.org>. Acesso em 18 ago. 2010.

DELUMEAU, J. História do medo no Ocidente, 1300-1800: uma cidade sitiada. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.

______. O pecado e o medo: a culpabilização no Ocidente (séculos 13-18). Bauru: Edusc, 2003.

FLEIG, M. O pedófilo: vítima de seu desejo e perversão. Entrevista [25/4/2010]. Disponível em <http://www.ihuonline.unisinos.br>. Acesso em 18 ago. 2010.

GUILLEBAUD, J. C. A tirania do prazer. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1999.

NOLASCO, S. Onde há pedófilos, há uma rede social que os mantém. Entrevista [26/4/2010]. Disponível em <http://www.ihuonline.unisinos.br>. Acesso em 18 ago. 2010.

ROUET, Albert. “L’Eglise est menacée de devenir une sous-culture”. Le Monde, Paris, 4/4/2010. (Título do artigo em português: “A Igreja está ameaçada de se tornar uma subcultura”.)



[1] O mons. Albert Rouet é arcebispo de Poitiers, na França.

Pe. João Batista Libanio, sj; Pe. Nilo Ribeiro Júnior, sj